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As CPIs, às gargalhadas

 

O que significam para uma virada de página frente à nossa corrupção sistemática, as gargalhadas e os tapinhas nas costas, o tutta buona gente em que terminaram as dez horas da vociferação anunciada de Roberto Jefferson, entre seus hematomas e rangeres de dentes? A catarse pedida por mais uma erupção do óbvio em nossa vida parlamentar? O anticlímax, até antes do tempo, ou já, de fato, a exaustão da farsa periódica, em que o país das clientelas se exorciza de seu fantasma camarada? Modernizou-se a corrupção, ou mudou o Brasil? O erro do PT, agora inescapável, é o de ter-se seduzido pelo imediatismo do sucesso, aceitando a realpolitik apertando o nariz para consolidar as suas maiorias parlamentares. Do corpo a corpo suarento para entrega dos cargos passou à compra segura dos votos no mensalão, à distância, da mala de Marcos Valério.


O usual das comissões de inquérito não é apenas o de acabar em água de barrela, na desproporção grotesca entre o que se alega apurar e, de fato, o número de cassações, resultantes da dispensa da apuração policial que hoje permite o rito das varreduras para valer no Congresso. As acusações continuadas do abuso do poder econômico nas campanhas políticas foram ouvidas em silêncio pelos acusados, proscrevendo-se a etapa da justa ira, e o ganho de certezas imediatas pela opinião pública já impermeável a mais poluição da imagem dos poderes públicos. FHC, o presidente sociólogo tem se extremado em repetir o adjetivo sistêmico, ao denunciar a praga continuada da corrupção. Não se a elimina num só dia, nem há remédio radical para exterminá-la.


O que persevera é esta crença da privatização da coisa pública, herdada da nossa cabeça semicolonial, pertinaz no loteamento de cargos, prebendas, funções, de velhas Repúblicas, e Estados Novos, à espera do desatar do desenvolvimento e de uma visão funcional efetiva do aparelho de governo. Da sociedade que lhe cobre o desempenho pela ação cidadã e da eleição que sancione os seus resultados. A volta à democracia fia-se na promessa da efetiva conquista do Estado de Direito, seus poderes e controles da melhor modernidade guardados na Carta de 88. Mas para passar de jogo de interesses carimbados à prática do bem comum, enfrentamos todo este teor da resistência das velhas clientelas.


Assistimos ao começo do abate da corrupção pelo espetáculo inaudito do impeachment de Collor e o aceite, como intolerável, da negociação da compra de votos, mesmo para salvação da República, como repetido pelo tucanato. Mas FHC só nos fala do anátema novo, no plano federal. Perseveraria a traquitana nos porões municipais ou regionais da política, sem ruído, ou chegada aos tapetes do Planalto. A crise renasce mais uma vez pela mais antiga das urdiduras. E a corrupção, ainda, de todo dia, ou entra em estertores tanto o PT chamuscado vai à virada de página e, por uma vez, ao abalo do status quo brasileiro?


O outro luxo novo do nosso discurso desses dias é o de se querer blindar o presidente, como se a crise fugisse da tradição do ''tudo bem'' da nossa história mole, e desmemoriada. Não se trata, entretanto, de ''salvar Lula'', nem de ver, como quer o sistema, uma transigência com o homem do Planalto, à custa do desmonte de sua equipe. Esta descontaminação, afinal, deixaria a nu o presidente, apartado da pureza ortodoxia inicial; dos companheiros da intimidade da jornada e, agora, de atores chaves do dito ''campo majoritário'', responsável pela estratégia de sucesso a dois tempos. O regime se estabilizaria para mostrar a sua cara num segundo mandato. Na lógica antiga das oposições, a dita blindagem quer tão só manter em pé uma Presidência em contagem regressiva, a quiçá negociar - como querem as lideranças açodadas do tucanato - compromisso da renúncia à eleição, para um desfecho melancólico, do PT da virada da página de nosso futuro. Só que a pretendida esperteza desses cálculos não se dá conta da solidez, de outra cepa, que hoje se instalou no Planalto.


Toda retórica das crises a que Roberto Jefferson já permitiu, o mais competente paroxismo, desde Carlos Lacerda, não atinge esses 65% do Brasil que considera o governo Lula entre muito bom e satisfatório. E por mais acrobáticos que sejam os vaticínios catastróficos, dos senhores da opinião pública, não se abalou, no vórtice do choque, a certeza da reeleição do presidente no seu quintal. O refogado das CPIs bate em vão, no país profundo de Lula, que a pouco se dá, e não se comove com o desnudamento periódico das nossas vestais políticas, aberta a bocarra fisiológica dos orçamentos, ou escancarado o nepotismo. O Brasil cartola ainda não se deu conta do peso simbólico da vitória de 2002 e do quanto ela gratificou pela primeira vez o país do silêncio e do quanto perdura na satisfação de cada dia, do ''operário lá''. O tempo de seu sucesso não é a das agendas dos donos do pedaço, ou mesmo de suas classes médias, nem da sua sofreguidão, nem das retóricas do caos. Lula tem o saldo histórico da expectativa de um inconsciente coletivo que chegou ao Planalto. Pode perdê-lo por obra desta mesma exigência de um irracional de esperança.


Um tempo, até, de anticlímax pode perdurar após os ''vais-e-vens'' das CPIs e na clássica soma algébrica dos seus desapontamentos finais. A virada de página, sim, dependerá de que o presidente mostre que esse script frente à nação que depara um Congresso a pique de se transformar em inimigo do povo. O Brasil do frisson moralista é o do país de sempre. Lula só poderá ser culpado do que não ousar, na ribalta em que o instalou o imaginário popular. E ele bem o entendeu, na intuição única do estar junto com sua gente, vacinado até do carisma pelo sadio deslumbre cidadão. O mesmo povo que entrou com o presidente no Planalto, e dele não sairá tanto continua a primeira festa do Brasil de fundo.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 13/07/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 13/07/2005