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Um prato de feijão

 

Eu nunca me meti nesse assunto de distribuição de terras, porque imagino que cada caso é um caso, ou, pelo menos, que cada região é uma região. No meu tipo de Nordeste (o Sertão Central do Ceará) não temos ou, então, não tínhamos (agora é assunto nacional) o problema do lavrador que não consegue terra para plantar. Lá as culturas são pequenas; ainda havia alguma fartura nos tempos em que se plantava algodão.


Mas o besouro "bicudo" acabou com os nossos algodoais e não se fala mais nisso. Fecharam-se as fábricas descaroçadoras, deixou-se de produzir o "resíduo" (a torta do caroço de algodão comprimido para lhe tirarem o óleo) e o "resíduo" era o principal recurso para alimentar o gado quando secava o pasto. Agora, pasto secou, fazendeiro fica no ora e veja.


Lá pelos nossos lados, não sabemos o que são os grandes latifúndios. Um fazendeiro gaúcho ou mineiro olharia para as nossas terrinhas como para um quintal pequeno.


No século passado, tivemos alguns latifúndios de tamanho razoável (como as terras do coronel Dadá, as do velho Miguel Francisco de Queiroz, as dos Paulas Pessoas em Quixeramobim. Mas a filharada dos donos era numerosa e, ao cabo de duas gerações, as terras estavam repartidas em lotes de meia légua, ou menos. Meu avô herdou muitas terras do seu tio Miguel Francisco. Mas, ao morrer, o avô deixava viúva e dez filhos. Cada um ficou com a sua fazenda; e só depois da morte de nossa avó (de quem herdei o nome) se repartiu a parte dela.


Nas fazendas, na nossa região, insisto, não há produção que se possa chamar de lucrativa. Um gadinho, em geral enxertado de zebu, sobrevive como pode aos longos verões, quando tudo o que era verde fica sem uma folha nos galhos, tal como o Alasca no inverno. Só nos meses em que chove é que os moradores plantam o milho e o feijão e um pouco de mandioca. A quantidade maior não se arrisca, só a que vai ser consumida pelo resto do ano, até chegar o inverno seguinte, quando se planta de novo. O dono, que também tem o seu roçado, faz o mesmo. E qual é o regime reinante entre o dono e o morador? O dono dá ao morador a casa para morar (antigamente era só de taipa, mas hoje, com a madeira ficando escassa, usa-se mais tijolo). Dá o roçado, e tantas tarefas quanto o morador ache que pode utilizar, já que não tem capital para maiores aventuras, como por exemplo, pagar diaristas, alugar tratores, etc. Ele próprio, o morador, antes fazia a cerca do roçado.


Hoje não: o dono tem de dar o roçado cercado e aradado. Mesmo assim, só raramente o morador aproveita todo o terreno de que pode dispor. A serviço da fazenda, quando solicitado, ele dá três dias de trabalho (pago), o que também é raro hoje, pois os donos plantam cada vez menos. Esse três dias têm um nome herdado dos tempos do cativeiro: chama-se a "sujeição". Os outros três dias são livres.


Terra tão pobre, clima tão incerto, nada de oficial para o combate às pragas (vide o caso do "bicudo"), ali o que menos falta é terra. Nunca ouvi falar em fazendeiro que negasse terra de plantar a morador. Na verdade, os moradores tendo o feijão para a panela, uma camisa para vestir, estão satisfeitos. Não sei de um que plante árvores frutíferas em redor de casa.


Rarissimamente e só no inverno as mulheres erguem um canteiro onde, nos meses de chuva, plantam cebolinha e coentro.


Um filho mais ambicioso emigra, vai para São Paulo. Os demais ficam, pouco mais que índios. Lá, algum dono mais moderno compra tratores, constrói silos - mas no fim de contas não vai saber como pagar as prestações do banco.


É, terras devolutas é o que ali não falta. E as experiências que o governo faz nos seus assentamentos até agora não deram certo. Sei de uma "comunidade" que, quando o banco viu, tinham vendido tudo: arados, tratores, vacas e o mais que lhes foi dado. Voltaram a viver como antes, plantando uma tarefa de feijão com o caco da enxada.


Não digo que não haja injustiças, que todos vivam num mar de rosas: ao contrário, só há por lá pobreza e falta de futuro. Mas o auxílio oficial deveria ser muito mais bem planejado e estudado, levando-se em conta as peculiaridades de cada região. Quem tem 10 mil hectares ou até 100 mil no Mato Grosso, e só os usa para um vago pastoreio, não tem nada a ver com os "latifundiários" do sertão do Ceará, que, quando têm uma légua quadrada são chamados de ricos.


 


O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 17/08/2002

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 17/08/2002