Bresser Pereira vem nos dar, nestas páginas, a análise talvez mais contundente da crise atual do sistema, batendo a sonda toda. Estaríamos a pique de uma crise de legitimação capaz de atingir as bases sociais do governo e as previsões tranqüilas, de início, de reeleição. Não nos poupa do veredicto letal: o governo Lula acabou. Pode continuar na rotina, já que golpe não existe, nem quebra do mínimo de virtude administrativa para entregar a faixa e os anéis do próximo mandato. O bisturi do sociólogo investiga o suporte de classes ao Planalto, nesse apoio a se desmoronar, e agrega, na faixa de perigo, a pequena classe média capitalista, a burocracia de Estado e o mundo empresarial, rendido, pela primeira vez, à avalanche eleitoral de 2002.
Dentro do sistema continuam os beneficiários dos juros altos, a ribalta em festa perpétua da finança e esse vasto e vago porão do dito apoio do povo. Mas, na soma das parcelas, os prós e contras pelos quais, na conta de Bresser, acabou o regime, não respondem, entretanto, pelo todo. Não obstante a irrupção da crise das CPIs nestas semanas, a avaliação positiva do presidente passou de 57,4% para 59,9%, de maio para julho, e a avaliação do governo como ótimo ou bom oscilou positivamente para 36%. Por certo as variações virão nos próximos dias, mas o dado básico é que os escândalos anunciados não têm o impacto avassalador sobre o núcleo básico do apoio popular a Lula, não comprometendo a viabilidade da reeleição.
O Brasil de salão continua a considerar os vaticínios sobre a opinião pública como seu animal de estimação. Só que não internalizamos a profunda diferença, hoje, de apoio do dito povo ao presidente. Foi todo um novo inconsciente coletivo que chegou ao poder, atarantado até pelo seu êxito, no espetáculo da tomada de posse no Planalto em 2003.
Esse sentimento, ao mesmo tempo pletórico e irredutível, continua sob o fascínio presidencial e se remunera pela enorme e única carga simbólica da chegada lá. Por mais que o velho moralismo se alevante e volte à água de barrela das comissões de inquérito, um próximo pleito será visto por esse Brasil de fundo como as tentativas de desmonte e de forra do país apeado do poder nas últimas eleições. Tal como essa contabilidade de classes e seus votos das previsões políticas tradicionais não põem a nu todo o peso real de voto para o novo pleito. Isso porque, após o acesso simbólico dos excluídos ao poder, deparamos o quanto a consciência desse fato desbarata os jogos do situacionismo e oposicionismo tradicionais.
Um vetor novo da coisa pública rompe a ronda da representação de interesses só compatíveis com o país oligárquico. A avalanche de Lula -essa que mantém íntegra a sua base e reeleição- nasceu da percepção da vitória diferente e se nutre dessa primeira fruição, independentemente dos resultados do governo. Não a atingem o desemprego, o vaivém da reforma agrária, os ganhos do Fome Zero ou do inédito do crédito para o miniempresário, que hoje começa a se espalhar no Brasil.
Não funciona a lógica das predições da queda da legitimação tradicional, para a do desgarre da base social de um governo, nessas condições tão específicas de acesso de Lula à Presidência. O país de agora não incorporou, ainda, a expectativa e a paciência do voto nascido desse inconsciente coletivo que transborda das representações clássicas ou de suas crises de legitimidade. O que lhe importa é a identificação primária com o presidente no Planalto, e que lá está por sua vontade. Sua decepção não é a dos desgostos de ocasião dos velhos donos do poder.
O governo Lula fracassa ou sobrevive numa outra onda de efetiva consolidação nacional, e não será pelos amuos óbvios, previstos pelo Brasil de dantes, que se reduzirá a força política para a verdadeira empreitada do Planalto.
O que se arrisca, sim, pelo "golpismo branco" é atrasar as tarefas objetivas do a-que-veio o PT, vencida a fase de estabilização para pôr-se à obra. Se o instinto de senso político do presidente o fez optar pelo sucesso da estabilidade -talvez em demasia-, tal só lhe obriga agora aos projetos efetivos de mudança. Mas seu atraso não modifica a balança da opção popular de 2002.
O Lula, visto como perseguido, só amplia o paradoxo do reforço dessa adesão primária, que espera, recupera e tem outra agenda para reconhecer o país da diferença. E a resposta do PT, inquirido pela perspectiva do Brasil dos cartolas, não vai ao penitenciário das autocríticas, mas à conservação desse pacto profundo, que hoje consolidou, na sua força simbólica, a virada de página.
Não é pela aceitação do papel de vítima que o presidente entrará num jogo que não é seu. Sabe onde avança a sua iniciativa histórica. O passo adiante pede, sim, a disciplina férrea de decidir a expectativa do país que com ele entrou no Palácio do Planalto em 2003; que fruiu, então, de uma primeira cidadania vingada; que vai à reeleição, nas suas contas com o presidente e, nesse estrito pacto de esperança, sem o profissionalismo da catástrofe à minuta.
Folha de São Paulo (São Paulo) 22/07/2005