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E agora Brasil de Lula?

 

Neste luxo único de crises deparamos um novo paradoxo reconhecido pela mídia brasileira. O PT despedaça-se tanto quanto Lula agüenta o tranco e mantém-se com um inédito capital político no país. Diante do rame-rame das nossas catástrofes de salão o novo desses dias mal começa a apontar. As manchetes repetem cansativamente que os miseráveis não se importam com o escândalo do ''mensalão''. E os vaticínios de que, afinal, Lula irá a um abate de popularidade não se confirmam frente ao ranço deste moralismo que se apossa periodicamente da classe média, que passou, desde 2002, a votar em Lula e ora fala como dona do pedaço. A fatura da decepção não tem nada a ver, nem se desconta no a que veio, de fato, o presidente. Nem o desestabilizará diante da confiança elementar em que, afinal, o Brasil dos destituídos dá outro compasso ao que seja a mudança brasileira.


Chegamos ao extremo da crise proverbial do país-bem, e dos pudores e das justificativas dos cartolas. Mas nenhum Ibope deixa de referendar a reeleição presidencial. É o que só torna inédito o passo adiante já vislumbrado por Lula. O que está em causa é dar-se conta o país que a nossa estabilização de fundo está na força com que o inconsciente político dos desmunidos veio ao poder e nele instalou o seu imaginário. Os rubores éticos não prevalecem diante desta gratificação primeira da opção pela estabilidade do fundo, da nação imemorialmente sofrida e que não optou como larga parte da América Latina, pela violência e a guerra civil sem retorno. Não cedemos ao levante que autorizariam a indecência da nossa distribuição de renda.


A crise não nos levará à regressão geral, comandada por um retorno às óticas clássicas do sistema. A destruição PT não tem o libreto da morte clássica dos partidos de clientela da nossa tradição semicolonial. Se, como dizem os apressados, constata-se com horror que não há diferença na corrupção, ela já aponta na inconformidade radical com que seus participantes na presente desgraça repensam a militância política. O desencanto torna-se sinônimo do abandono da coisa política, com claro impacto sobre o avanço da cidadania ganho nessa trintena pela convocatória do PT. A legenda, atingida, pode evanecer-se se pensada ainda no quadro convencional de um jogo de poder assentado apenas entre o Estado e a sociedade, deixando de fora a ação direta da expectativa do país desconstituído, senão anômico, mobilizado por Lula. O que acontecerá com o PT? Debandada em massa da esquerda, pela diáspora do desengano? Somatório ao fundamentalismo do PSOL e à tirania da pureza na vida política? Recuo à força sindical e ao lastro político corporativo que Lula teve até hoje o gênio de evitar?


É pelos seus despojos de agora que o PT mostra o cadáver do partido diferente. Não há a pensar num loteamento póstumo de suas facções, ou aninhar-se em partidos de mensagem semelhante como um PPS, ou na miragem de um PT do B ou do C, já que não se herda uma legenda mas se a esquarteja. O momento de desengano pode se socorrer até do profetismo das suas matrizes fundadoras, como reclamam agora Bofe ou Casaldaliga, cobrando a temeridade de que só se nutre a esperança intransitiva contra a decepção. Mas ela não vinga no empenho apenas de separar-se o joio do trigo, como prega, por exemplo, Tarso Genro, confiando no revigoramento do partido pelo escarmento das bandas podres, a contaminar toda chegada de novos atores ao poder. Trata-se de castigo inevitável de toda eficiência confundida com supermalícia, ou de devoramento inevitável do bom mocismo.


O essencial agora é largar-se Lula à sua intuição, no carreio de sua força simbólica, e na reafirmação da iniciativa governamental a qualquer custo, sem cair no contraditório das respostas infindáveis do clima de inquisição baixado sobre o país. A virada de página nacional que representou a eleição de 2002 obriga Lula a não miniaturizá-la, nem expô-la ao formato que lhe queiram reduzir as CPIs de sempre e o discurso mediático, dono dos scripts do futuro. Inquieta que o Presidente já se tenha deixado envolver pela disputa moralista, exasperando-a à última interpelação: quem, honesto como eu? Mas o arroubo é o da primeira consciência que sente a nação escapada à malícia política ou aos corredores palacianos.


Inquietante, sim, no desabafo na Refinaria de Duque de Caxias, foi outro reflexo defensivo, de abraçar o complexo sindical brasileiro entre os capacetes dos operários da Petrobrás, num povo que se sente e o apóia, por sobre qualquer denominador, face aos adversários de sempre, da nação acordada pelo suicídio de Getúlio Vargas.


O que se parta agora com uma eventual regressão da postura interna de Lula não tem volta. O despedaçamento do partido torna o Presidente gestor praticamente exclusivo de seu capital simbólico. O passo adiante imediato já não precisa sequer do anúncio de um programa. O que não tolerará o Brasil de Lula é a quebra do seu imaginário: este se mede por uma escala íntegra de esperança e não por uma pauta de promessas.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 27/07/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 27/07/2005