A crise do Planalto se vê dominada pelo enfoque ético e as reparações cobradas ao situacionismo brasileiro para retorno à normalidade do Governo Lula. O que, para tal, logo sai de cena é a ribalta petista da Paulicéia, onde parecia jogar-se sempre o futuro do regime, e o rondó de seus nomes favoritos. Seria mesmo de perguntar-se se o vaivém destas lideranças - culminado no impasse da eleição de Severino para presidente da Câmara - não refletia as primeiras escaramuças para saber-se qual o delfim ao governo de São Paulo, na pugna entre Mercadante, Dirceu, Genoíno ou João Paulo Cunha. A nova Presidência do PT, entregue a Tarso Genro, reflete uma estratégia de poder, que retorna a uma visão de projeto, arraigada na defesa do partido diferente, e vai até o real questionamento dos modelos de mudança a partir de um verdadeiro escrutínio das alternativas à globalização.
Devemos a Tarso um estudo sobre a prospectiva de Lênin, que diz de uma das mais versáteis das nossas cabeças políticas, para saber o que existe de pedagógico e também de obsoleto, na resposta ao "que fazer" do fundador da URSS. A severidade inicial das palavras do gaúcho, para resgate da legenda, exibe a contundência das satisfações clássicas. Mas não se redime o direito à retomada da trajetória do PT, apenas à base da separação do joio do trigo, no choque destes dias: Tarso sabe como poucos o perigo da pureza política e, sobretudo, de como a instância das prioridades, em que se mantenha a credibilidade nacional do petismo, não se resume no castigo exemplar, ou no "doa a quem doer".
Se Lula sai íntegro da primeira convulsão, só se avantajam as distâncias entre o capital político do partido para um segundo mandato, e a visão, até, da identidade básica do PT como ator coerente à sua mensagem. Sobreviver à crise depende da conservação determinada da iniciativa governamental. O lance do estar no timão precede ao que fazer com ele. E vivemos, nesse momento, o pique neste prumo da balança. Um Lula que se deixe arrastar pelo discurso da crise fatalmente se transforma em seu prisioneiro. Há que se assentar na força e na cadência do protesto primário e convincente de sua sinceridade, e não se expor ao muro das lamentações e contra-invectivas das Comissões de Inquérito.
O ir adiante envolverá - com o realismo de Tarso Genro - a consideração de como ficará o PT, não só como corpus político do sistema, mas como depositário da esperança popular que elegeu Lula e que é, hoje, fator único da sua continuidade. A se permanecer na lógica da dureza das purgas como salvação diante da opinião pública, onde parará o cutelo das cassações? Vai a todas as cabeças de um primeiro escalão do partido? Chegaremos à derrubada da própria maioria que garantiu as votações das primeiras reformas políticas do sistema? Sobretudo o avanço decidido, paralelo, da agenda do Planalto, se contraporá às indecisões do Congresso, nos próximos meses cruciais, como árbitro perplexo desta varredura dos contaminados, em espetáculo sem precedente na vida pública brasileira. Na lógica do "mensalão", quem o empalmou perde o mandato? Ou dele escaparão os recebimentos interpostos, ou a salvação pelo pântano da falta final e contundente de provas? Que Congresso resultará deste escarmento, a invalidar diante da opinião pública qualquer respeito à trava-mestra de um Estado de Direito no Brasil e de respeito às instituições?
Não nos damos conta de que, mais que a queda de imagem do Governo, o que se arruinou nas últimas semanas foi o respeito ao Legislativo, trazido a um nível quase de tolerância zero com o seu papel hoje para responder ao País da mudança. Ou até de autocorreção de seus abusos, por Comissões de Inquérito que, de fato, ponham o dedo na ferida, ao invés do exorcismo clássico de um sistema, com as vítimas escolhidas para o sacrifício e a retomada das rotinas, das políticas de clientela, nepotismo e "mensalão", modernizador do abuso continuado da pecúnia sobre o voto.
Inquieta a reincidência do Planalto na procura das maiorias a qualquer custo, trazendo-se os prepostos de Severino à composição do Executivo, exposto à crise. E tal, ao preço, inclusive, de ícones do próprio partido, como Olívio Dutra, entregando a pasta das Cidades no momento de claro retorno do PT às suas imagens matrizes, quando o triunfo da integridade avulta sobre a dos próprios resultados imediatos da pasta.
Se o situacionismo brasileiro escapa da crise a partir do homem do Planalto, o faz no desconhecimento completo deste prazo de espera que lhe outorga o seu país, imune ao fogo de artifício das Comissões de Inquérito. Mas a vigência do sistema passa este senso quase que leninista com a brutalidade do real imediato, que não permite ao presidente deixar-se envolver pelo oposicionismo, sob pretexto da confiança na veemência de uma lógica defensiva. O apoio ao Planalto nada tem de lógico, no sentido da trama convencional do Brasil institucionalizado. Diz respeito, sim, a uma moção de fundo a que Lula sabe falar. Mas não pode agora, no que sejam as fragilidades do indivíduo, contra a intuição da persona política, expor-se ao requisitório da honestidade com a certeza da sua absolvição. O Brasil do impeachment ou de uma renúncia presidencial não permite que se corte, historicamente, de novo, o baralho da esperança. Há cartas dadas e jogos feitos nesta opção popular de base, adubada por trinta anos de espera. Ela não permite guinadas nem quer explicações. O pacto é primordial. Perde-se ou ganha-se, fora das questões de ordem, ou dos maneirismos mediáticos das Comissões de Inquérito. E Lula mesmo não é senão uma peça neste protagonismo maior, em que o inconsciente político brasileiro assegurou-se uma saída. E só ele diz do encanto que persevere, ou da sua quebra, numa história sem precedentes, de como, então, iremos ao novo "que fazer" nacional.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 29/07/2005