Tenho tido a impressão de que, no meio de toda a confusão em andamento no país, há uma tendência a cultivar-se uma certa compaixão pela situação do presidente da República. Ele é visto e descrito como isolado, abandonado e traído e cheguei a ler diversas vezes que nem mesmo quer falar com correligionários e colaboradores históricos, tais como o dr. Genoino e o dr. Dirceu. Não sei se é verdade e o sentimento de compaixão pelo semelhante é dos mais nobres que a natureza humana pode abrigar. Mas, no caso, não compartilho desse sentimento, até mesmo porque o presidente até agora não deu ousadia aos súditos de explicar sua posição no imbróglio, nem parece estar disposto a dar. Quem quiser que especule sobre se ele sabia de todo ou de parte do esquema de corrupção que continua a ser exposto. O jeito com que ele aparece em público é o de quem não está nem aí e tem pouco ou nada a ver com os escândalos que envolvem seu partido e acontecem durante sua gestão.
No tom de bravata que caracteriza muitos de seus pronunciamentos, vem insistindo em que a elite o está sabotando, para inviabilizar sua administração ou mesmo apeá-lo do poder. E ele, como um David desafiando o Golias corporificado na elite, não baixará a cabeça, como disse em público. Tudo bem, mas há uma dificuldade generalizada em saber que elite é essa, tão contrariada pelo seu governo ou sua figura. Em primeiro lugar, no topo da elite política está ele mesmo, encabeçando o Poder Executivo num regime presidencialista que dispõe até mesmo de um instrumento de feição ditatorial, por ele usado e abusado, a famigerada Medida Provisória, tão vilipendiada antes. Em segundo lugar, se bem entendemos a palavra, que elite ele vem contrariando? Só se for a famosa gafieira Elite, onde quiçá ele terá abusado da umbigada de maneira folgazã. O FMI o cobre de elogios, os bancos nunca estiveram tão felizes, os interesses dos poderosos não foram nem estão sendo prejudicados. Apesar de alegações em contrário, nenhuma reforma significativa se concretizou e não se pode argumentar que ele está realizando um governo dirigido aos que se costuma vagamente chamar de interesses populares.
Aliás, quem está mais elite do que ele? Nestes dois anos e pouco, temos um presidente que já foi comparado ao imperador do Japão, como símbolo de seu povo, talvez não divino como no Japão, mas imperador de qualquer forma. Em palavras que ele pronuncia com freqüência, seu governo é dos melhores, senão o melhor, que o Brasil já experimentou. Declarou não ter pecados. E, mais recentemente, afirmou, em outras palavras (não lembro as exatas e faço este parêntese só para dizer que não estou tentando distorcer nada, até porque seria burrice, diante de tantas testemunhas), ainda não haver nascido brasileiro, homem ou mulher, para ensinar ética a ele.
A tentação me vem, sigo o conselho de Oscar Wilde e não resisto a ela. Será que ele, em algum momento secreto de solidão, não se imagina futuramente santo? O falecido Papa João Paulo II, já candidato à canonização, se referia de vez em quando a seus pecados. O presidente, não os tendo, leva uma boa vantagem. Quanto a ainda estar para nascer um brasileiro com estatura ética suficiente, é bem verdade que Irmã Dulce já nasceu e morreu, mas, se viva fosse, dificilmente teria o que ensinar a ele, assim como outros heróis, mártires e abnegados brasileiros, entre nós ou já finados.
Não, vamos admitir (não tenho certeza plena, mas vamos admitir) que essa possibilidade é forçação de barra de minha parte. Mas não forço a barra quando vejo, como muitos outros, que ele agora recorre à sua força junto ao chamado povão, que nem sabe bem o que quer dizer “elite”, e se dedicará ao contato direto com esse povo, já que a situação política institucional chegou ao ponto em que está e poderá piorar, em grande parte porque ele tomou posse mas não assumiu seus deveres apropriadamente, fiando-se num esquema de resultados catastróficos. Então a palavra “elite”, embora completamente descabida, vaga e destituída de pertinência, serve para esse uso especial.
Até mesmo porque se sabe que o chamado povão imagina que quem paga os impostos roubados e não aplicados em benefício dele são os ricos. Portanto, eles que se danem, lá na tal elite. Pagar imposto, para a maioria, é desembolsar o Imposto de Renda ou o IPVA. A ninguém ocorre que um mendigo que ganhe cinco reais vai tomar uma mordida do governo que pode chegar a a um percentual da esmola bastante significativo. Se o mendigo, que, como qualquer companheiro, também tem direito a isso, tomar uma cervejinha, comprar um maço de cigarros e um sanduíche, o governo terá abocanhado um belo naco da esmola. Mendigo paga uma carga pesada de impostos, assim como quem paga as cestas básicas “gratuitas” são seus próprios “beneficiários”, em última análise. Todo mundo sabe que rico não paga Imposto de Renda, a mesma coisa podendo ser dita de um número considerável de bancos.
Aí fica fácil (ou ficava; para mim ficava, cada vez menos fica) levar o povo no gogó. A elite é o demônio, está causando esse descalabro todo, quer desmoralizar ou pelo menos enfraquecer de vez o presidente, mas este conta com a força do apoio popular e pode desdenhar e fingir ignorar o que se passa, não é com ele. Só que, em versões diversas mas essencialmente as mesmas, já vimos esse filme e sabemos no que invariavelmente dará, ainda mais com os nossos irmãos mais ao norte do jeito em que andam. Finjam por um instante que eu sou elite, porque tenho uma coluna neste jornal. Então, na condição de elite, insisto em fazer minha parte e dizer: “Pelo amor de Deus, presidente, o que eu menos quero no mundo é que o senhor deixe o poder, de que forma for! O que eu quero é que o senhor assuma logo!”
O Globo (Rio de Janeiro) 31/07/2005