Aproveita-se a traição, mas despreza-se o traidor. O ditado é antigo, do tempo das cavernas, mas será sempre atual. É o caso de W. Mark Felt, ex-agente do FBI, que agora assumiu ser o Garganta Profunda, informante principal da dupla de jornalistas do "Washington Post", responsável pela série de reportagens sobre o caso Watergate, que provocaria a renúncia do ex-presidente Richard Nixon, em 1972.
Foi positivo o resultado da traição. Livrou os Estados Unidos de um presidente que participou do plano de invasão da sede do partido que fazia oposição a seu governo, pretendendo voltar ao poder. Mas não foi por aí que Nixon sentiu-se obrigado a renunciar. A opinião pública norte-americana voltou-se contra o seu presidente porque ele mentiu diversas vezes, alegando que nada tinha com o caso. Naquele tempo, o cidadão comum dos EUA, perdoava quase tudo dos outros, menos a mentira.
Um presidente podia ter seus erros, mas não podia mentir à nação. Mais tarde, tanto Bill Clinton (no caso da estagiária da Casa Branca) como principalmente George W. Bush mentiram, este último, ao mundo inteiro, e sua mentira provocou uma guerra em que milhares de pessoas continuam morrendo.
Voltando ao caso do Garganta Profunda. Ele não agiu por motivação superior nem por amor à verdade. Após a morte de J. Edgar Hoover, que chefiara o FBI durante anos, Felt acreditava que seria o substituto do lendário manda-chuva da polícia federal dos EUA por ser o segundo na hierarquia funcional. Nixon nomeou um outro e o preterido vingou-se, contando à dupla de jornalistas tudo o que sabia sobre a cúpula da Casa Branca, fornecendo inclusive fitas em que Nixon dizia palavrões .
Toda glória aos dois jornalistas que aproveitaram as informações de um funcionário ressentido e mantiveram até agora o sigilo da fonte.
Uma fonte que nada teve de heróica nem de patriótica.
Folha de São Paulo (São Paulo) 02/06/2005