Correspondente do "Washington Post" no Chile entre 1972 e 1978, John Dinges acaba de lançar "Os Anos do Condor - Uma Década de Terrorismo Internacional no Cone Sul", cuja tradução foi recém-lançada no Brasil. Além da experiência pessoal no próprio olho do furacão, Dinges teve acesso a documentos tornados públicos durante o governo de Bill Clinton (1993-2001).
Na realidade, tirante um ou outro detalhe pontual, quase tudo o que ele revela não chega a ser novidade para a história paralela que começou a ser feita tão logo se iniciou a caça às bruxas nesta parte da América Latina, com atentados que tiveram, se não a participação direta, a supervisão logística da CIA.
Tudo começa com a chegada do Partido Democrata à Casa Branca, com Jimmy Carter incorporando ao seu programa de governo a retirada do apoio dos Estados Unidos às ditaduras do Chile, da Argentina, do Uruguai e do Brasil.
No dia 28 de agosto de 1975, em ofício confidencial, o general Manuel Contreras, chefe do Dina (serviço secreto do governo do Chile), alerta o general João Batista de Oliveira Figueiredo, chefe do SNI (o equivalente do Dina no Brasil), sobre a necessidade de fazer alguma coisa contra os principais contestadores dos regimes militares instalados pela força nesta parte do continente. O jornalista revela que Figueiredo não foi à reunião, mas enviou ao Chile, em nome do SNI, um representante de sua confiança.
O ofício de Contreras está transcrito, em reprodução xerografada, em "O Beijo da Morte", livro que escrevi em parceria com Anna Lee (editora Objetiva, 2003). O chefe do Dina faz menção explícita a Juscelino Kubitschek e a Orlando Letelier, ex-ministro de Salvador Allende, o presidente chileno deposto e assassinado durante o golpe militar promovido pelo general Augusto Pinochet.
Um ano após o ofício de Contreras, em 22 de agosto de 1976, Juscelino morria num acidente na Rio-São Paulo, acidente até hoje contestado, mas não por mim, que não tenho opinião formada sobre as hipóteses de atentado ou desastre rodoviário. Mas, um mês após, em 21 de setembro do mesmo ano, Orlando Letelier morria num atentado a bomba, em Washington, atentado que não sofreu qualquer tipo de contestação e que foi atribuído oficialmente a Contreras, que seria mais tarde condenado à pena de prisão perpétua no Chile.
John Dinges não faz referência à morte de JK, mas traz revelações sobre a morte de Letelier. E exime o ex-presidente Figueiredo de qualquer participação na rede terrorista que passou a ser chamada de Operação Condor -ressalva que também fizemos, Anna Lee e eu.
Iniciado em 1975, o movimento começou a ser executado em 1976, havendo a confissão do ex-ministro da Justiça daquele tempo, Armando Falcão, que, em entrevista ao jornal "O Globo", admitiu que "em 1976, alguns órgãos contrários à abertura promovida pelo presidente Geisel, buscavam soluções extralegais".
A Operação Condor cometeu numerosos crimes nos quatro países que, com o apoio de Jimmy Carter, se libertavam dos regimes militares. Em 2000, uma série de reportagens publicada no "Jornal do Brasil", assinada pelo jornalista John Mitchell, "levantava pontualmente dezenas de mortes, desaparecimentos e torturas, não apenas porque os envolvidos, de um e de outro lado, não tinham peso político, como também a maioria dos casos era posterior ao período em que se verificaram as três mortes que nos interessavam" (Anna e eu fazíamos referência às mortes de JK, João Goulart e Carlos Lacerda, ocorridas em apenas nove meses - "O Beijo da Morte", pág. 108)
Em tempo: as reportagens de John Mitchell até hoje não foram contestadas e o livro de Dinges as confirma, com novos e surpreendentes detalhes.
Vinte anos antes da Operação Condor, já havia uma intromissão dos Estados Unidos na política do ainda não apelidado Cone Sul da América Latina. Matéria publicada na Folha em 28 de maio de 2004 traz a transcrição de telefonema, liberado por Clinton, que confirma a participação dos Estados Unidos na deposição de Allende, um dos pontos de partida da Operação Condor.
O telefonema revela uma conversa entre Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos (1969-1974), e seu secretário de Estado, Henry Kissinger. Em certo trecho, Nixon comenta: "Como você sabe, nossas mãos não aparecem neste caso". O secretário de Estado responde: "Nós não o fizemos. Quero dizer, nós os ajudamos (...) criamos as melhores condições possíveis".
Nem todos os documentos secretos do governo norte-americano foram ainda liberados. No caso brasileiro, a discussão sobre os arquivos secretos do regime militar arrefeceu. Num futuro talvez distante, parece-me que um juízo conclusivo possa ser feito pelas gerações que nos sucederem.
Folha de São Paulo (São Paulo) 03/06/2005