Vieram me procurar uns jovens estudantes de literatura, e me pediram para responder a duas perguntas: Quais são seus heróis prediletos na literatura brasileira? E heroínas?
Lembrei-me de questionário idêntico, que me fora feito há muito tempo; encontrei o recorte em que lhe respondia e, com surpresa, verifico que as respostas a dar hoje seriam as mesmas de tantos anos atrás.
Em primeiro lugar venero Macunaíma, é claro. Macunaíma, herói da nossa gente. Macunaíma das incríveis aventuras, o herói sem nenhum caráter, que não é símbolo porque não se passa para isso, fica muito acima, quilômetros, léguas. Aquele que fez tudo que não fizemos e quereríamos fazer; com a sua gaiola de legornes debaixo do braço pode ser, à vontade, bandeirante, pirata, guerreiro, sedutor e ladrão; percorre os sete caminhos do mundo, descobre os limites indevassados da terra dos sem-fim, intriga, mente, ama, engana, briga e apanha, andando sempre muito acima do bem e do mal - pois não foi à toa que deixou a consciência na ilha de Marapatá.
Depois dele, meu predileto é o velho Vitorino Carneiro da Cunha, herói de Fogo Morto, esse nosso Quixote ou nosso cavalheiro Bayard, figura impecável, quase sem medo e sem reproche, dentro das suas limitações humaníssimas.
Incapaz de tolerar sujeição, encarnação de desassombro e da independência, advogado das causas perdidas, grandiloqüente, farofeiro e eternamente a esbravejar em sagrada ira contra os poderosos e seus malefícios. Não há quem o conheça e não o ame e, amando-o, não faça como seu próprio criador, José Lins do Rego, que confessava haver alçado o bravo capitão a uma postura de árbitro dos seus atos e seus impulsos, de tal modo que jamais se atreve a praticar, de cabeça erguida, uma ação que o velho Vitorino pudesse reprovar.
Quanto às heroínas, o primeiro lugar nessa galeria é um clássico. Não tem de escolher, está por si só escolhido e aclamado. Pois esse primeiro posto é inegavelmente de Capitu, a dos olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, imagem do eterno e venenoso feminino. Capitu, deusa de todos nós.
O segundo lugar está meio indeciso. Poderia ser Dona Janaína, rainha do mar, poderia ser a filha da Rainha Luzia. Talvez devesse pertencer a Iracema; mas Iracema não é bem uma mulher, é uma alegoria vestida de índia, com sua personalidade toda dissolvida na prosa poética de Alencar - e dela nenhuma outra lembrança temos, além dos lábios cor de mel, do talhe de palmeira, do cabelo de asa de graúna. E isso é pouco. Antes apelar para Moema, que sabia nadar e matou-se afogada.
Mas já que me pedem uma opinião pessoal, prefiro dar o segundo lugar àquela que é realmente a predileta do meu coração e uma espécie de equivalente, no mundo livre da infância, do velho Vitorino Carneiro da Cunha: é a boneca Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, nas histórias de Monteiro Lobato.
Emília não tem medo de ninguém; nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque boneca não morre. Não admite leis, nem regras, nem gramática. Não respeita cara nem autoridade. Bruxa de pano com olhos de linha preta, assim mesmo acha que tem tudo, não quer ouro nem fortuna, nem amantes, nem poder. Só quer aventuras e o direito de abrir a boca e opinar sobre o que bem entende. Emília, meu exemplo e minha aspiração, tantas vezes, meu raio de sol, asneirento, faísca de liberdade, de coragem, e de insolência, minha mestra e meus amores - Emília, Marquesa de Rabicó.
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 30/11/2002