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Tempos inseguros, tempos sem continuidade

 

O caso quem me contou foi meu querido amigo Raimundo Pessoa: o daquele conhecido que fora passar uns dias em Belo Horizonte e logo à primeira noite reuniu-se com velhos amigos no antigo bar, recordando os tempos de mocidade.


No dia seguinte, cedo reencontrando um dos companheiros da roda, este lhe deu a notícia: "Você se lembra como fulano estava animado, feliz, ontem à noite? Pois hoje de madrugada morreu de enfarte." O visitante, a princípio nem queria acreditar. Mas como o outro insistisse com a triste nova, ele então abriu os braços indignado: "Mas não é possível. A gente não tem mais nenhuma garantia!"


O pior é isso mesmo, essa insegurança. A falta de garantia. Sempre foi assim, mas parece que ultimamente é pior. Não só porque aparentemente aumenta o número de enfartes, como decerto aumentou a arrogância do homem, e a morte sem aviso prévio lhe parece uma falta de consideração das forças lá de cima. Pois se a humildade faz a gente aceitar com paciência tanto o esperado como o inesperado, o orgulho nos convence de que deveríamos ser uma exceção, acima das contingências comuns.


Dirão que em todo tempo e em todo lugar a vida sempre foi insegura. Quem discute isso? A vida era insegura, mas o homem tinha outros valores a que se agarrar, não apenas a triste vida. Era a tradição, era o senso de família, era a certeza de sua alma imortal. Esperando sobreviver por tantas formas, a morte não lhe parecia tão terrível. Mas nós, hoje em dia, o nosso único tesouro somos nós próprios. É este miserável feixe de ossos, músculos e banha que faz toda nossa riqueza.


Os tempos são inseguros, tempos sem continuidade. O homem de dantes se iludia com vários sonhos de sobrevivência; se construía uma casa era para filhos e netos, sim, tinha a certeza de que, com sua semente, estava plantando gerações. Se escrevia um livro - cada livro era uma vida e jamais lhe ocorreria providenciar a glória imediata, tinha de se fiar no julgamento dos pósteros. Hoje, no mesmo computador pessoal em que batemos o livro, escrevemos também o anúncio que o divulga, e sabemos que dentro de um mês ele pode estar esquecido. Por isso, dentro de um mês, temos de escrever outro livro, que igualmente envelhecerá, como um jornal.


O rei que outrora começasse a construção de um templo ou de um palácio sabia que provavelmente não o inauguraria, e contudo eles governavam vitaliciamente. Hoje, os governantes fogem de construir obra que exija tempo para ser erguida maior do que um mandato seu. Por isso mesmo, quando se escavam chãos históricos, ainda se encontram os muros queimados de Tróia, os paços enterrados de Creta. Mas das nossas cidades, o que restará no futuro, construídas às pressas sobre precários esqueletos de ferro? Como serão nossas ruínas quando o ferro enferrujar? E a ciência, o progresso, as máquinas maravilhosas? Tudo metal oxidável, matéria plástica. Quanto à memória escrita, lembremo-nos de que os antigos registravam seus feitos em tijolos de argila cozida em estelas de pedra. Nós registramos os nossos em cadernos de papel e em bobinas de celulóide.


Talvez porque tenha a obscura certeza de precariedade do momento presente, é que o homem se agarra com tanta fúria não só à vida, como precisamente ao instante que vive, e procura tirar dele o máximo, em felicidade, em prazer, e glória, ou nos sucedâneos disso tudo a agitação, o ruído, a embriaguez, a notoriedade. A propaganda; o anúncio, atividade quase suspeita para as velhas exigências éticas, se transformou em necessidade legítima.


E o mundo vai ficando sempre mais penoso e incômodo de viver para os delicados, para os tímidos e para os humildes de coração. E não se tem mesmo mais nenhuma garantia. Nem para a vida nem contra a morte. Talvez o melhor mesmo seja renunciar, pelo menos ao mundo e suas pompas. E nem precisa entrar para um convento. Basta se afundar Brasil adentro - e ainda existe terra livre por aí -, cercar um roçado, levantar um rancho, plantar feijão e milho, criar umas ovelhas, uma vaca. Mesmo com seca, enchente ou geada, havendo trabalho e paciência, não dá para morrer de fome. Será a pobreza e a renúncia. Mas é sempre melhor do que o desespero.




O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 14/12/2002

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 14/12/2002