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Os livros de Machado

 

Haverá na realidade um mistério Machado de Assis? Assim pensava meu amigo William Grossman, professor na Universidade de Nova York. Era ele um machadiano completo. Especializara-se no escritor brasileiro e dava aulas sobre a obra de Machado.


Estava eu na Universidade de Colúmbia, também era Nova York, a cargo de um curso de seis meses sobre ensaística brasileira, quando recebi de Grossman um telefonema convidando-me para estar presente a uma aula sua, informando-me que se tratava de algo inédito. Antes que eu perguntasse o que era, disse: "Vou promover um julgamento de Capitu." "Julgamento?" É. Todos os meus alunos leram o romance e vão agora formar um grupo de jurados, com promotores e advogados de defesa. Vamos julgar Capitu. Quero que você assista".


Lá fui eu, não podia perder um acontecimento desses. O julgamento durou uma hora. Falaram dois promotores, sendo um aluno e uma aluna. Também um aluno e uma aluna fizeram a defesa de Capitu. Qual foi o resultado? Capitu foi absolvida. O argumento da defesa foi de que não há no romance uma palavra sequer a favor da traição, que seja atribuída ao autor, a Machado, ao passo que só o personagem, o próprio Bentinho, tem a certeza de que foi traído.


É uma sutileza da narrativa. O autor sai da história como quem diz: "Vocês, leitores, que julguem, eu não sei se ela traiu Bentinho". A defesa argumentou que a semelhança do menino com Escobar não é argumento final. Há semelhanças que são coincidências. Afinal os moldes do rosto humano não são tantos assim. Os julgadores da Universidade nova-iorquina acharam que tanto um como o outro lado poderia estar certo e que, na dúvida, "pró reo".


Com "Dom Casmurro", lançou de fato Machado de Assis um romance que atingiu praticamente o mundo todo. De que modo o fez? Apresentando, num estilo muito dele, um dos sentimentos básicos da raça humana: o ciúme. Bem no fundo de tudo, sempre se encontra o ciúme. Em plena Bíblia, lá está ele com David. Em Shakespeare, surge Otelo.


Numa cena dramática de "Dom Casmurro", Bentinho responde ao menino que dizia "meu pai, meu pai", com a frase: "Eu não sou seu pai" e, na mesma noite, vai ao teatro onde se representava justamente "Otelo", "que eu nunca vira", diz o personagem. Sabia apenas o assunto, "e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro por causa de um lenço, um simples lenço."


A bibliografia sobre Machado de Assis - de livros dedicados ao estudo de qualquer aspecto de sua obra e de sua atividade literária - acaba de ser acrescida de um levantamento de sua biblioteca.


O volume "A biblioteca de Machado de Assis" segue a linha traçada por Jean-Michel Massa em trabalho que publicou em 1961 na "Revista do Livro", do Instituto Nacional do então Ministério de Educação. Em 1989, a professora Glória Vianna deu, na Academia Brasileira de Letras, com livros que haviam pertencido a Machado e leu o trabalho de Jean-Michel Massa. Teve então começo a elaboração do trabalho de agora, a que se ligaram ainda José Luís Jobim, como organizador, e mais Ana Lúcia de Souza Henriques, Maria Elizabeth Chaves de Mello, João César de Castro Rocha, Ivo Barbieri, Cláudio Cezar Henriques e John Gledson.


O livro vem, na realidade, a ser um elemento de enorme importância no avanço de um conhecimento maior, que passamos a ter, do escritor que representa por inteiro a literatura do País. Cada um dos componentes da equipe trata de um aspecto da obra machadiana e de determinadas características sugeridas pelos livros que viveram com ele. Assim, constavam de sua biblioteca duas coleções completas de Shakespeare, uma no original e a outra em tradução francesa, como também coleções completas de Balzac e Diekens e 11 volumes de Goethe, todos traduzidos para o francês.


No início de seu texto no livro de agora, faz Jean-Michel Massa referência ao fato de que sua pesquisa inicial começara pouco depois das comemorações do cinqüentenário da morte de Machado de Assis. Pois, dentro de três anos, estaremos celebrando o centenário de sua morte. Em colaboração minha de há uma semana falei na data, que deverá ser comemorada a partir de uma declaração oficial por parte do governo de ser o ano de 2008 o "Ano Machado de Assis".


Dentre as muitas comemorações, comandadas pela Casa de Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras, avultarão com certeza os ciclos de conferências, as edições especiais da obra de Machado e de livros sobre sua importância na civilização brasileira.


As palavras de José Luís Jobim no livro de agora podem servir também de sugestão para uma linha de comemorações. Diz ele: "O conhecimento de que restou do universo de obras da biblioteca de Machado de Assis nos permite saber, pelo menos parcialmente, quais os assuntos, quais os gêneros, quais os autores lidos por Machado, a partir dos quais/ com os quais/ contra os quais ele elaborou sua escrita.


Como os leitores contemporâneos, com freqüência, não têm noção do papel que certos assuntos, obras e autores desempenharam no passado, uma das tarefas que cabe aos estudiosos da literatura é recuperar, para o público de hoje, o contexto intelectual vivenciado por Machado. Assim, poder-se-á perceber em que medida Machado atendia a uma tendência dominante no gosto de sua época e que medida se contrapunha a ela".


"A biblioteca de Machado de Assis" tem a égide da Academia Brasileira de Letras. Composição e fotolitos da Art Line Produções Gráficas. Organização e apresentação de José Luís Jobim. Capa de Adriana Moreno.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 14/06/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 14/06/2005