Antes que me acusem de propaganda enganosa, apresso-me a esclarecer que os que esperarem aqui uma análise profunda da chamada "lei da mordaça", ou mesmo de uma explicação pormenorizada do que é a tal lei, se decepcionarão. Estou tão confuso sobre o assunto quanto a maior parte de vocês, se é que a maior parte de vocês, nesta época do ano em que somos forçados pela tradição a devolver à circulação o dinheiro que achamos que é nosso e ficamos com um riso besta estampado nas nossas faces ovinas, tem tempo para se preocupar com a lei da mordaça.
Até porque não há, segundo creio, somente uma lei da mordaça, mas várias leis da mordaça, em diversos estágios de elaboração, meandrando pelos gabinetes e corredores do Congresso.
Sei apenas que a lei da mordaça a que se referem notícias e comentários mais recentes proíbe a autoridades divulgar fatos sobre os quais tenham conhecimento, no exercício de suas funções. Dito assim, até parece coisa de sueco - não vamos incriminar ninguém antes de a culpa estar formada, não vamos atingir reputações injustamente, não vamos prejudicar investigações com a divulgação de dados que possam beneficiar os culpados e assim por diante.
Uma beleza, como, aliás, é grande parte de nossa ordem jurídica. Ousaria mesmo dizer que, em matéria de leis suecas, estamos muito à frente da Suécia.
O chato, lamentavelmente, é que só temos as leis (e, até janeiro, teremos o primeiro-ministro, a quem chamamos de presidente e, em breve, será o melhor ex-presidente do mundo, com Jimmy Carter em distante segundo lugar) da Suécia, não temos o resto. Pois o que vem à mente de qualquer brasileiro, ao saber de uma lei como essa, é que sua finalidade não é proteger inocente algum, é proteger os culpados mesmo, é arrolhar ministério público, juízes, promotores, delegados e quem mais lá estiver incluído no rol dos que poderiam falar. E, por tabela, a imprensa - ou mídia, no feliz dizer hodierno - também vai ficar arrolhada, por falta de acesso a dados importantes.
A imprensa não é constituída por bonzinhos e santos. Tem todos os defeitos de qualquer coletividade humana, definida por qualquer critério, como têm defeitos as coletividades de padres, barbeiros, torcedores de qualquer time, motoristas de táxi, médicos, donas de casa, o que lá for. E, de fato, por exemplo, não há editor que não tenha protagonizado ou testemunhado como é necessário conter o ímpeto denunciador de jornalistas que querem condenar ou absolver antes da Justiça e jogam irresponsavelmente com a honra ou reputação alheias. Mas não pode ser essa uma razão para não querermos uma imprensa livre, pois as vantagens dela para a liberdade geral de longe superam as desvantagens.
A imprensa, no Brasil e também fora, é rotineiramente responsabilizada pelos males que denuncia. Não passa dia sem que alguém acurralado, de senadores a cartolas de futebol, culpe a imprensa pelo mal que ela denuncia. Há gente que põe a culpa na imprensa até pela situação socioeconômica do povo brasileiro. É como se se pensasse que, não se vendo a miséria, ela não existiria. O chato é que não se trata de um problema de física quântica, trata-se de um problema que pode ser atacado no universo newtoniano mesmo: ela existe e não é a imprensa que a cria, assim como não cria ladrões do Erário, bandidos sanguinários e toda espécie de monstruosidade que vira notícia.
Mas, ao que parece, vem recrudescendo o problema da censura, o que de novo deve ser culpa da própria imprensa que sofrerá (ou já sofre) censura. A lei da mordaça a que fiz referência acima logo vai a plenário e tudo indica que o Congresso atual a quer deixar como lembrancinha final a nós todos.
Que beleza para os impunes, hem, nada de nomes, nada de ações, nada de nada e o tudo-fica-por-isso-mesmo que nos caracteriza a História permanecerá preservado e fortalecido, levando-se ainda em conta (nunca mais ouvi falar nela, não sei se já está em vigor, quais são seus dispositivos que mais me afetam, nada, nada, minha ignorância é vasta) que também deveremos ter uma lei da imprensa severa. Para que lei de imprensa, não sei.
A definição jurídica dos crimes contra a honra, que são os principais atribuídos à imprensa, já existe e pode ser aplicada a qualquer um, inclusive um jornal ou tevê, sem que os estabelecimentos culpados tenham de ser fechados, assim como, no Brasil, não se mata (a não ser privadamente, mas isso aí já é outro capítulo, o da pena de morte privada, instituição nacional já arraigada) quem injuria, difama ou calunia.
Envolvidos por tanta coisa, não prestamos atenção. A censura vai mostrando sua carantonha repulsiva, nós não vamos notando e, um belo dia, estaremos cercados por ela. Posso enganar-me, mas o Rio de Janeiro está na vanguarda da Nova Era Censória. Falou-se em casos envolvendo o Artur Xexéo, o Mauro Rasi e o Arnaldo Jabor. Dos três, só conheço pessoalmente o Jabor, mas não nos vemos há muito tempo, de forma que não sei direito o que houve, mas o que se comenta a boca pequena é que a dra. Rosinha tem ficado chateada com críticas ou brincadeiras da imprensa e ameaça processos.
Ameaçar processos é um direito de qualquer um, mas, no caso, sente-se uma pitadinha de censura. Pitada mais forte no caso, também comentado a boca pequena e, pensando bem, não tão pequena, de Aldir Blanc, um dos nossos maiores compositores populares e cronistas, que teria sido súbita e inesperadamente demitido devido a pressões lá do alto.
Aldir diz que sim e acredito nele. Mas, mesmo que ele esteja enganado, quem vê a barbas do vizinho pegarem fogo... Mandam a prudência e meu terror a processos abandonar esta coluna, para assumir uma de jardinagem, onde evitarei insultar o cravo ou desacatar a rosa, para não falar que não me envolverei em problemas controvertidos, como o das bromélias.
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 15/12/2002