Evandro Lins e Silva vai nos fazer muita falta - a nós, da Academia Brasileira de Letras - porque era o proprietário de uma cultura suficientemente esclarecida e sólida, para resolver os problemas de natureza regimental, estatutária ou jurídica, que surgiam nas nossas reuniões das quintas-feiras, quando sempre propunha uma solução pertinente, correta e sensata. Ele ocupava a Cadeira nº 1, que tem Adelino Fontoura, como patrono; Luís Murat, como fundador; e, como sucessores, Afonso Taunay, Ivan Lins e Bernardo Elis.
Vamos sentir bastante a sua ausência, porque era um colega muito querido, que ao longo dos três anos e meio de sua constante presença na ABL, deu provas cabais de um excelente companheirismo e de um convívio afável e carinhoso.
Quanto mais homenagens recebia - e foram muitas as recebidas nos últimos anos - mais se acentuava, em sua conduta, uma atitude de humildade e de modéstia, sobretudo diante dos poderosos, que jamais cortejou.
Foi um lutador quixotesco, que somente agora, com a já diplomada vitória do seu candidato à Presidência da República, começava a ver uma luz a iluminar esta nova era para a nossa geração.
E, ao contrário do que tanto desejava, não mais estará vivo para assistir à posse do seu eleito no próximo dia 1º de janeiro, mas teve, pelo menos, o prazer de recebê-lo, numa visita de gratidão em sua residência, e de tê-lo como companheiro a empurrar seu esquife até a última morada, onde agora repousa, em nosso Mausoléu no Cemitério.
Não é à-toa, nem por acaso, que ele viveu uma existência muito coerente, fiel ao seu ideário socialista - do socialismo democrático - sempre voltada para a defesa dos direitos humanos e dos milhares de perseguidos políticos, que advogou, não raro sem honorários, perante o Tribunal de Segurança Nacional e o Tribunal do Júri, onde a sua atuação, como "O Criminalista do Século", deixou marcas indeléveis do grande jurista, que realmente era.
Foi assim que defendeu os nossos confrades Carlos Heitor Cony e Josué Montello, os jornalistas Helio Fernandes e Marcio Moreira Alves, os Governadores Miguel Arraes e Mauro Borges, o Deputado Seixas Dória, os escritores Caio Prado Júnior e Ênio Silveira, e o ruralista José Rainha Júnior.
Ele foi um arauto da cidadania, um defensor da liberdade, um paladino da ética, um exemplo de lealdade e uma das nossas poucas referências unânimes, em toda a História Brasileira. A sua luta jamais foi pessoal, nem nunca teve ódios, raivas ou rancores.
De suas funções públicas - como procurador-geral da República, como chefe do Gabinete Civil da Presidência, como ministro das Relações Exteriores e do Supremo Tribunal Federal - saiu mais pobre do que quando nelas entrara.
Dizia-me ele:
- Murilo: no dia em que o presidente João Goulart me levou para o Governo, em Brasília, eu tinha um Chevrolet importado; quando voltei para o Rio, tinha um fusquinha nacional. Até os seus últimos instantes, ainda tinha de trabalhar para viver. E o fazia, religiosamente, todos os dias, convicto de que o ramo criminal do Direito não dá riqueza a nenhum advogado.
Na véspera de morrer, deixou com os seus filhos, as razões de uma apelação a ser interposta no dia seguinte. E morreu pobre, numa admirável lição e num magnífico exemplo de honradez - uma mercadoria que, infelizmente, hoje anda cada vez mais escassa na paisagem brasileira, tão marcada por tantas CPIs e por tantas corrupções.
Jovem de espírito e de cabeça - "um jovem metido a besta e a velho", como ele próprio se definia nos seus 90 anos bem vividos -, Evandro possuía uma extraordinária disposição de trabalhar, uma inexcedível vocação de defender os injustiçados, uma enorme alegria de viver e um permanente sorriso nos lábios.
Tinha um juvenil amor pela vida, que lhe transcorreu bravamente, como se fosse um novo Dom Quixote, um Cavaleiro Cervantino, Fidalgo e Andante - romântico, nobre e sonhador - nas suas lutas contra os moinhos do Poder. (Dir-se-ia até um personagem ulyssiano de Joyce, que tentava transformar em realidades concretas as suas utopias socialistas.)
Quando assinou o requerimento do "impeachment" contra Fernando Collor, transformando-se no seu principal acusador, declarou que ali representava o papel de "Advogado do Brasil". E acrescentou:
- Deus foi muito generoso comigo, quando me deu essa chance de defender o meu País.
Semanalmente, todos os domingos, cruzava comigo na Avenida Atlântica, ao meio-dia, sob um sol causticante, fazendo o seu "cooper" habitual.
E explicava:
- Estou aqui, na Praia de Copacabana, bem no meio da festa.
Morreu no esplendor de sua atividade física e intelectual, sempre com planos e projetos para o futuro, inclusive com um livro sobre o advogado Evaristo de Moraes, que deixou inacabado.
E morreu em conseqüência de um tombo sofrido no Aeroporto Santos Dumont, justamente quando gloriosamente regressava de Brasília, onde fora alvo de grandes e merecidas homenagens, na posse dada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, como Conselheiro da República.
Ele foi um homem que marcou toda a sua existência, por uma enorme coragem no enfrentamento do regime militar, que o aposentou do seu cargo de ministro do Supremo Tribunal, cassando-lhe todas as condecorações até então concedidas, e que, justamente, na semana passada, lhe foram devolvidas.
Pagando um tributo altíssimo à fidelidade dos seus modelos políticos e ideológicos, pensou em exilar-se, quando os generais de plantão o despiram de sua toga e de sua beca, em represália aos "habeas-corpus" que ele, corajosamente, concedia a todas as vítimas da repressão e da tortura.
Um homem de tanta intrepidez e de tanto destemor cívicos acabou morrendo de um simples tropeço, que lhe fraturou o crânio e o retirou da vida, fazendo-o ingressar para sempre na Eternidade Infinita e no Universo Onírico dos homens de bem, retos, dignos, incorruptíveis, exemplares, honrados e competentes, como ele, do qual já sentimos hoje - e sentiremos sempre - saudades imensas.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 25/12/2002