Dentre as datas literárias de 2004, este se apresenta, na realidade, como o ano de José Cândido de Carvalho. Nascido em 1914, chegaria agora aos noventa anos. Sua obra-prima, "O coronel e o lobisomem", saiu em 1964 - há quarenta anos, portanto. E ele morreu, em 1989 - há 15 anos. São três datas "redondas", no sentido de comemoráveis. É o que diz, em nota prévia, a escritora Lourdes May, que escreveu um livro, "Vida e obra de José Cândido de Carvalho", a sair este ano.
Quando José Cândido era vivo, disse-lhe o autor dessas linhas que planejava escrever um ensaio longo chamado "O romance brasileiro de Sargento a Coronel", quer dizer, de "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antonio de Almeida, a "O Coronel e o lobisomem".
Por que marcar um começo no Sargento e um fim no Coronel? É que os dois se parecem de um lado e, de outro, não se parecem absolutamente. Mas retratam com perfeição dois aspectos da nossa existencialidade. Manuel Antonio, jovem jornalista do Rio de Janeiro, insuflou um extraordinário senso de humor em seu livro, criando a carioquíssima figura de Leonardo, pícaro como os que quais o sejam. Que vinha a ser o pícaro? Era um não-convencional, quase sem-moral, um inimigo natural dos costumes normais.
O nome e o símbolo surgiram com o exclusivismo do primogênito, isto é, do sistema anterior aos tempos modernos em que só o filho mais velho herdava. Herdava tudo, as terras, o dinheiro, os cavalos, os bois. Seus irmãos tinham de enveredar pela aventura, inventando meios de ganhar dinheiro, isto é, tinham de ser "pícaros". O Rio de Janeiro do "tempo do Rei", pouco antes da Independência e logo depois desta, era, como continua a ser, um lugar alegre, dado, como se dizia antigamente, a patuscadas, e o romance de Manuel Antonio mostra, com precisão, esse ambiente.
Seu estilo alcançara um nível que, de permeio com a graça carioca, era de uma direiteza que poderia agradar a Stendhal, que assim se exprimiu sobre o assunto: "Eis o que é o estilo: acrescentar a um pensamento dado todas as circunstâncias próprias para produzir todo o efeito que esse pensamento deve produzir."
O estilo de José Cândido se aprofunda mais na palavra, na raiz mesma de tudo o que se pensa e se escreve. Filho de um ambiente cultural em que também vivera José do Patrocínio, pertencia à cultura da cana de açúcar, embora diferente da que, no Nordeste, produzira toda uma literatura, mas a ela estaria ligada pelo modo como o homem reage ao seu ambiente e aos produtos desse ambiente. Como narrava José Cândido?
Desde as primeiras palavras de seu romance, como dono de seu gênero. Seu livro tem uma arquitetura própria e, junto com ela, uma qualidade que define todo bom romancista: a concepção, o ter um padrão pelo qual sua narrativa segue, o produzir o sentimento do pathos , isto é, aquele oculto desespero que mora no fundo de cada ser humano. Contudo, seu livro "O Coronel e o lobisomem" não deixa de ser alegre, com uma utilização das palavras como significando mais do que parecem capazes. Surrealista? Claro, mas de um surrealismo que não se esconde, que se apossa das palavras e joga-as para o ar, funâmbulo que, por brincar com elas, domina-as.
Havia, em José Cândido, uma percepção nítida e clara das realidades da ficção, num entendimento direto de um mundo que, sendo de fora, se oferece, maleável, ao manuseio do romancista. Num espaço de teor surrealista, nada é propriamente sagrado e tudo pode levar a um sorriso. Daí o ser "O Coronel e o lobisomem" um romance que faz rir. O que sugere uma ligação entre o Sargento e o Coronel está na qualidade que também era a de Stendhal. Explico: eles não se apegavam ao enfeite, ao excesso de adjetivos, à desconversa enfim. Diziam o que tinham de dizer, narravam o que tinham de narrar, com uma extrema economia de palavras.
Hoje, a quarenta anos de seu lançamento, podemos sentir, mais do que então, de que maneira "Coronel e o lobisomem" nos representou e nos representa como pertencentes a uma sociedade nova de gente, com hábitos próprios, capaz de erguer um arcabouço novo de palavras, e de com elas criar um estilo que passa a pertencer à linguagem de um país no seu viver a vida e no desenvolvimento de sua capacidade de sonhar.
Os torneios de linguagem que, tanto nos diálogos como nas descrições de cenas, José Cândido usa, mostram que, nas mãos de um mestre, as palavras que empregamos descuidadamente no dia-a-dia, podem revelar-se como profundamente inseridas no que somos, partes de nós, lucidamente nós.
Entre as comemorações pelos 40 anos da publicação de "O Coronel e o lobisomem", destaca-se o ciclo de conferências a se realizar na Academia Brasileira de Letras, a cuja cadeira nº31 ele pertenceu. Seminários e debates ocorrerão em Campos, sua terra natal, e em várias Faculdades de Letras do País. Seria indispensável também que se fizesse uma boa reedição de seu romance.
Tribuna da Imprensa - (Rio de Janeiro - RJ) em 21/01/2004