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Uma história de amor

 

Este espaço é dos leitores e do jornal. Não deve expressar sentimentos que possam parecer pessoais, por mais justificáveis que sejam. Mas o meu tema de hoje, embora pessoal, é daqueles que merecem uma meditação universal: a relação entre pais e filhos, os valores da família, o amor e a morte.


A visibilidade pública cria um estereótipo do político como uma alma de gelo, com a vaidade de parecer forte e invulnerável, de ser um fingidor da ''dor que deveras sente''. Se é debilidade, eu tenho, e com orgulho assumo, todos os defeitos das mais frágeis e indefesas criaturas, as fraquezas do amar e do sentir.


Minha relação com minha mãe sempre foi muito forte. Era devoção e segurança. Meu pai morreu cedo e recebi a graça de vê-la chegar aos 92 anos. Mas não há tempo nem idade para aceitar-se a morte. Evitava essa idéia. Hoje, sinto como é difícil o meu mundo sem a sua presença. Os vínculos com meus antepassados acabaram-se com minha mãe. Todos estão mortos. Meus ombros pesam nas incertezas das raízes que agora sou e amanhã também morrerão para crescerem outras que um dia também se renovarão no mistério da vida.


Tenho outras confissões. Junto a minha mãe não conseguia envelhecer. Julgava-me sempre o menino do seu carinho, um velho de 74 anos no tempo de filho, sem idade. É esse mundo que acabou.


Fui testemunha da sua vida e do seu exemplo. Menina, aos 14 anos, num desses dramas que separam as famílias, com seu forte caráter ficou ao lado do pai, meu avô, e com ele saiu de Correntes, em Pernambuco, fugindo das secas em busca dos vales úmidos do Maranhão. Fugia da seca e do destino. De saúde frágil, viveu a pobreza mais dura. Nunca ninguém ouviu de seus lábios um lamento, nunca alterou a voz, nunca discutiu com ninguém. Ensinava pelo exemplo, nas crises falava pelo silêncio.


Sei que existe fé porque vi minha mãe professar a fé com a força de todas as crenças. Sei o que é ser cristão porque ela era cristã: amava a todos, oferecia a outra face do rosto, sabia o que era o próximo no exercício da oculta caridade. Sei o que é a força da oração porque vi minha mãe orar a vida inteira e tudo conseguir orando, dias e noites agarrada às contas do terço e com os olhos ''nos olhos do crucificado''.


Sua casa sempre foi cheia dos filhos, netos, bisnetos, tataranetos, filhos que adotou, que criou e de todos que dela recebiam carinho e abrigo. Nunca deixou que o poder entrasse em sua casa, nunca lhe ofereceu cadeira larga em sua varanda. Ninguém conhece um gesto seu de interferência, uma atitude de ressentimento ou de censura. Mas não faltou nunca a predicação dos valores morais, da ponderação, do equilíbrio, do respeito às pessoas. Era pobre porque nunca quis ter nada. Sua casa era um exemplo de simplicidade e despojamento. As luzes que a enfeitavam eram suas velas e candeias.


Era uma mulher forte e frágil. Deus deu-lhe a graça de chegar ao fim da vida sem o menor sinal de senilidade. Sua cabeça era límpida e clara. Escreveu carta aos filhos. Era uma canção de felicidade, de gratidão pela vida, de agradecimento a Deus. Seu pedido: que fosse enterrada no mais simples caixão, com sandálias e num pobre vestido branco que às escondidas, com a cumplicidade de uma filha, mandara fazer. Que os filhos continuassem a manter os pobres que ajudava.


Ela bem merecia aquilo que Bandeira escreveu sobre Irene no Céu: ''Pode entrar, você não precisa pedir licença''.


Perdoe-me o leitor: é um desabafo de amor, de um menino de 74 anos que perdeu seu tesouro.




Jornal do Brasil - (Rio de Janeiro - RJ) em 23/01/2004

Jornal do Brasil - (Rio de Janeiro - RJ) em, 23/01/2004