O mais complexo e difícil dos problemas humanos é o do próprio homem e sua história. Indagar do sentido desta, e de como ela se desenvolve no tempo, implica aceitar a existência ou não de valores dotados de certa duração e consistência.
Enquanto perdurou a crença em um Direito Natural de caráter transcendente, como expressão de uma tábua de direitos e deveres inatos e superiores, que o ser humano era obrigado a respeitar para legitimar as suas ações, a continuidade do processo histórico foi considerada isenta de desvios e mutações que pusessem em risco o seu desenvolvimento natural.
Quando, a partir do século 15, com o Humanismo e o Renascimento, é o homem visto como foco ou centro irradiador da própria conduta, independentemente de diretrizes divinas, o conhecimento dos indivíduos e das coletividades se baseia no homem mesmo, o que dá início ao que chamamos de modernidade.
Na era moderna, com efeito, o que interessa fundamentalmente é o campo de interesses e valores vividos pelo ser humano em sua faina histórica, que Machiavelli entendeu sujeita a virtudes subjetivas e ao acaso, que ele denominava fortuna.
Grande passo na compreensão do comportamento humano através do tempo foi dado por Giambattista Vico, que negou a continuidade da história em sua clássica obra Princípios de uma Ciência Nova, mostrando, com abundância de exemplos, que ela se processa através de períodos que se repetem como corsi e ricorsi (idas e vindas) ou, como expressivamente diz Gilberto Freyre, "surgências e insurgências".
Ficava, assim, aberto o debate para saber-se se, no decurso das distintas civilizações, o homem se depara com "valores imutáveis", ou, se, ao contrário, tudo é relativo, dependente de causas objetivas e de imprevisíveis circunstâncias.
A posição de Hegel, na primeira metade do século 19, foi no sentido do crescente desenvolvimento unitário da história, defendendo um historicismo absoluto que em si próprio se legitimava, não deixando resto para o acaso ou a fortuna, tudo acontecendo em função da seriação objetiva das idéias.
É sabido que contra essa historicidade idealista se situou a filosofia positiva, que substituiu o desenrolar das idéias pela concatenação objetiva dos fatos, ligados entre si por uma causalidade natural imanente, que punha em causa liberdade como tal.
Reagindo contra o naturalismo positivista surgiram, a cavaleiro dos séculos 19 e 20, várias correntes de idéias, restituindo a liberdade à experiência ética, como o fez Bergson; ou revelando, através do processo histórico, as autônomas forças psicológico-vitais do mundo do espírito, consoante o compreendeu Dilthey.
De uma forma ou de outra, ganhou, então, a atenção dos filósofos não naturalistas, a problemática dos valores, concebidos antes como entidades ideais, equivalentes aos entes lógicos e matemáticos. É a essa altura que situo meu pensamento, porém negando a idealidade dos valores, que considero expressões do dever-ser e não do ser, o que dá lugar ao "historicismo axiológico", termo com que o filósofo italiano Luigi Bagolini qualificou minha posição.
Ficava de pé o problema da relatividade ou não do processo histórico, reconhecido como sendo próprio das ciências humanas, chegando eu à conclusão de que, não obstante a natureza histórica dos valores, há alguns que, em virtude de sua relevância e essencialidade para a existência humana, se tornam constantes, perenemente exigíveis. São os que denomino "invariantes axiológicas", como o valor da pessoa humana, o direito à vida, ou a liberdade, exemplos por excelência de valores antropológicos.
A última das invariantes axiológicas é o valor ecológico, que a Constituição de 1988 consagra no art. 225, segundo o qual "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
Compreendem-se o entusiasmo e a dedicação que em todos desperta essa nova invariante axiológica, sendo natural que atentamente a defendam o Poder Judiciário e o Ministério Público.
Há, todavia, necessidade de se reconhecer que o ecológico não é um valor absoluto, porquanto a preservação do meio ambiente é exercida em função da vida humana, ou por outras palavras, da "pessoa humana", a qual representa o valor-fonte de todos os valores. A Ecologia subordina-se, assim, à Antropologia, o que o Ministério Público não raro esquece, perpetrando erros que bloqueiam iniciativas do maior alcance social e existencial.
Nesse sentido, lembro-me que a artista de televisão Xuxa teve a idéia de construir um grande parque de diversões à margem do Rio Itanhaém, inspirando-se no de Orlando, não podendo realizar esse empreendimento pelo fato de o magistrado local ter julgado procedente a ação promovida pelo promotor público que entendeu que o projeto iria abranger áreas destinadas à habitação popular. Imenso foi o prejuízo para a coletividade em geral e, especialmente, para o turismo de Itanhaém, cidade histórica em declínio turístico, em confronto com os seus antigos distritos, os municípios de Peruíbe e Mongaguá. O certo é que as áreas supostamente ameaçadas e desnecessariamente preservadas continuam em total abandono, por não serem propícias à moradia.
Interferência inexplicável do Ministério Público temos também com a sustação da construção da barragem de Paraitinga e Biritiba-Mirim, destinadas a abastecer mais de 4m3/s para o Reservatório da Cantareira, ora em gravíssima crise, a pretexto de que seria impedida a passagem de animais...
Poderia dar outros exemplos de injustificados óbices a necessários serviços públicos, mas os expostos bastam para demonstrar que o Poder Judiciário e o Ministério Público têm dado excessiva proteção a fatos que não representam prejuízo real ao meio ambiente, lesando interesses sociais relevantes, esquecidos de que se protege a natureza em razão do homem.
O Estado de S. Paulo (São Paulo - SP) em 28/02/2004