A presença de Martin Heidegger na filosofia deste século obrigou o homem de nossa época a alterar posições e a repensar diretrizes. Se o existencialismo de Kierkeggard possuía o caráter de uma angústia intensamente exprimida (e talvez por isso mesmo o fosse mais existencialista), faltava-lhe um ''método'' para que suas idéias se enfeixassem num verdadeiro sistema filosófico. Para o pensamento de Kierkeggard não havia necessidade de serem erguidos sistemas. Para Heidegger, no entanto, era necessário, antes dos primeiros passos, o estabelecimento de um ''método'' que pudesse culminar num sistema de pensamento. Daí, inclusive, a necessidade de inventar uma terminologia, de criar palavras próprias, capazes de exprimir o que sabe existir de novo em seu esforço filosofante.
Foi tão longe nesse propósito (mais do que James Joyce na literatura) que provocou duas reações: ou não o entendiam ou achavam ridículas suas invenções vocabulares. Acontece, no campo da filosofia, mais do que no das artes, um imediato enrijecimento de idéias desenvolvidas por filósofos anteriores, de modo que, diante de uma novidade, pode o professor comum de filosofia, mesmo em grandes centros como os da Alemanha, apegar-se a seus conhecimentos mais antigos e recusar a novidade. Haveria verdadeira novidade em Heidegger? Do ângulo de quem procura o ''sentido do ser'', sim. Porque a simples proposição, de que o ''Dasein'' (o ''ser aí'') seja feito em sua ontologicidade existente, do ser enquanto ser do ente, em sua relação com o ''estar-no-mundo'', faz surgir um fato novo do problema. Em seu trabalho Uber den humanismus, diz Heidegger: ''a essência e estatística do mundo repousa na existência, que se apresenta distinta da existência pensada num ponto de vista metafísico''. Acrescenta que esta existência é o que a filosofia da idade média concebia como ''actualitas'', o que Kant chamava de ''objetividade da experiência''; Hegel, de ''objetividade da experiência''; e Nietzsche, de ''eterno retorno do mesmo''. Para Heidegger, a ''existência'' só tem sentido no ''universo que a circunda'', no ''mundo'', no fato de que o ser de seu ente, o seu ser, é um ''ser-aí''.
As plantas e os animais, privadas de linguagem , permanecem prisioneiros no ''seu universo'', mas ''sem mundo'', isto é, sem enlarguecimento consciente que a linguagem ao mesmo tempo registra e permite. O problema da linguagem é, por isso, muito importante para Heidegger, (como tem sido, desde a filosofia grega, para todos pensadores sistemáticos). Em Heidegger, a linguagem não é apenas um meio de expressão (ou como ele mesmo diz, ''o meio de um organismo se manifestar''). Quando afirma que a ''linguagem é a morada do ser'', é porque acredita que o que existe, antes de tudo, é o ser, e que o pensamento pode promover a relação do ser com a essência do homem sendo. Ou melhor, talvez o verso ''promover'' não explique bem a tese de Heidegger, no caso, porque o pensamento, para ele, não é a ''relação'', nem a inventa, nem a fabrica; apresenta-a, como uma oferenda, ao Ser, e, no processo dessa oferta, o Ser chega à linguagem.
Não preciso acrescentar que, em filosofia, ''linguagem'' nem sempre significa apenas a ''linguagem falada'', o uso da de palavras, a fala. Mas, qualquer que seja a direção do pensamento - sua tomada de contato com o ''o mundo'', com o ''universo circundante'' -, existe um ponto interno de comunicabilidade que comumente assume a forma da palavra. O pensamento puro, como tal, isto é, sem palavras, o pensamento que fosse apenas um conjunto sensorial (visual, tátil, gustativo) poderia, em tese, ir tão longe como o que tem a ajuda das palavras, mas, se a elas chegamos, foi porque, nesta oferenda do pensamento ao Ser, culminou um longo processo da luta do homem em busca de si mesmo.
Ao mesmo tempo em que o pensamento pensa, age. Esta ação está intimamente ligada ao Ser ''que-está-sendo'', ao Ser resistente, ao ''existente que está-aí''. O perigo, que domina grande parte do pensamento ocidental, está na divisão lógica que costumamos fazer entre ''sujeito'' e ''objeto'', divisão criada por uma necessidade de tornar a linguagem um denominador comum de sentimentos que se comunicam, de vontades que se manifestam, de ações que se anunciam. Daí a importância de que a linguagem se liberte de suas prisões gramaticais, tarefa reservada ao pensador e ao poeta.
É claro que, no sentido comum da palavra, o pensamento de Heidegger também leva a uma ''angústia'', bem parecida com a que atormentava Kierkegaard. Desde que o ''ser o mesmo da existência é ser-para-a-morte'', a angústia começam a tomar corpo no pensamento heideggeriano. A ''angústia diante da morte'' cria, segundo Heidegger, este ser inautêntico, o ser cotidiano, que não é pessoa alguma, não é ser algum, não constitui uma ''existência'', porque está divorciada do próprio esclarecimento, do conhecimento de si mesmo, por causa do terror que a idéia da morte causa em cada um.
A fuga à cotidianidade acaba sendo, por isso, uma preparação para o encontro de si mesmo. Neste ponto, torna-se atuante a filosofia de Heidegger por que obriga o pensamento a buscar saídas para a sua temporalidade. Quando, em críticas literárias e, de ensaios, insisto na importância de que Heidegger seja conhecido pelos que hoje no Brasil se dedicam a tarefas de julgamento (literário, político, social, econômico, científico), é porque sem o domínio do muito que está implicado no pensamento heideggeriano não creio seja possível, a alguém, avaliar o inteiro alcance das obras que se realizam, se planejam, se pensam, se pregam, se escrevem, no momento.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 03/03/2004