Sob as cobertas, os arrepios de frio. Vira-se de bruços contra o colchão e basta ficar quieto e logo começa a sentir calor. Do ângulo em que está, olhando a mesinha de cabeceira, o copo vazio é imenso, coando a luz da tarde. A garrafa de água mineral choca, a colher de remédio dentro da xícara de porcelana azul com frisos dourados.
- "Tudo parece como antigamente."
Sempre que fica doente é como se voltasse à infância. Os mesmos cuidados da mãe, com as mesmas superstições. Só que agora há lucidez, ele sabe que não tem nada, uma gripe mais forte, amanhã estará bom. Em criança, a doença era uma desgraça ou ameaça, um de seus irmãos morrera aos dois anos, de meningite. A mãe sempre temia pelo pior e ele imaginava o próprio enterro, as flores, o caixão branco - seria branco como o do irmão, ou teria direito ao caixão envernizado dos adultos?
Lá fora, a tarde acaba de cair e logo virá o pai. Depois o jantar, ele ouvirá o ruído dos talheres ao longe. A mãe lhe trará a refeição, será bom comer como antigamente, mimado, coisa frágil e amada.
- Ana vem aí.
A mãe bota a cara na porta para avisar que a moça chegou. Não está contrariada, embora não goste dela.
- Como é, já morreu?
Ana é a mesma lá de fora. Dentro do quarto, ela é a cor e o cheiro do mundo. Ali na cama, o dia foi vazio e longo, nada aconteceu, a não ser a febre, 38 graus, 37 e meio, remédio, um gole d'água, o calafrio, o calor súbito, remédio, 39 graus, a injeção que o rapaz da farmácia veio dar, uma torrada, suor, 37 e meio.
Ana é a vida que foi igual para todo mundo. Viver é ser feito Ana, claridade e som: o mundo que não foi dele.
Ela bota a mão na cama:
- Posso sentar aqui?
- Pode.
- Então chega pra lá.
Ele se encolhe com cuidado, abrindo espaço para ela. Sabe que o cordão do pijama está solto, só consegue dormir com o cordão do pijama aberto, e ele teme que a moça veja sua nudez.
- Sua mãe não se incomoda?
- Não. O pai chega daqui a pouco.
Ana se curva e morde o queixo dele. Ele sente no peito o peso e o calor dela.
- Quando casarmos, sempre que você adoecer eu vou ficar na cama também.
Com a mão, alisa os cabelos do rapaz. Ele a olha, angustiado.
- Ana, estou com febre.
Ela quer beijá-lo. Mas o rapaz está com gripe e gripe pega. Os dedos abrem a blusa do pijama e o peito cabeludo aparece. Beija ali, sentindo na boca a pele aquecida pela febre.
A mão dela tateia, procurando, procurando.
- Quer?
Ele sente a mão lá embaixo, onde a febre de vez em quando coloca um tremor de desejo.
- Não.
Ana se levanta. Vai até a janela e vê as luzes da rua que se acendem.
- Lá está aquela vaca olhando.
- Que vaca?
- A mãe do Oscar. É uma vaca. Gosta de rapazes. Papa tudo, até o menino que vem trazer o pão.
- Como é que você sabe?
Ela não responde.
- Bom, mais tarde volto, depois do jantar...
Ele agora vê as pernas da moça. O desejo é uma fisgada em seu corpo castigado de febre.
- Ana!
- Que é?
Ela abandona a janela e vem para ele.
- Não. Fique onde estava. Ali.
Ela volta à janela. Quando percebe que o rapaz a deseja, levanta o vestido.
- Assim está bom?
Ele não responde. Os olhos acesos, a boca tensa, engole Ana com raiva. A moça comenta:
- Olhe que isso faz mal. Dá tuberculose.
Ele já se livrou do desejo. Sente-se frustrado, como se tivesse corrido para apanhar um ônibus impossível.
Se a mãe entrasse naquele momento, ele não saberia o que fazer com a mão. Ana apanha um lenço.
- Toma.
Ela chega mais perto e levanta novamente o vestido:
- Beija.
- Ana, nunca vou me casar com você.
- Ué! Por quê?
- Você faz isso com todos... é uma ...
- Tá certo. Mas não precisa ofender. Vim aqui porque pensei que você gostaria... Vou embora... Não volto mais....
- Não quero que você fique zangada... Mas você não presta... Faz aquilo no cinema. E agora, aproveitando a minha doença, veio me provocar. Isso não se faz....
- Mas você não gosta de mim?
- Gosto. Gosto de suas pernas. Elas são a coisa mais bonita do mundo.
- Então veja pela última vez.
Levanta a saia até a cintura. Faz um giro sobre si mesma, depois o vestido cai, em silêncio, e em silêncio ela vai embora.
O pai já chegou e toma banho. O lampião da rua coloca na vidraça da janela um clarão amarelado. No escuro, ele sente que a febre aumentou. Tem a garganta seca, vontade de beber qualquer coisa doce, um suco de laranja, com bastante gelo.
A mãe entra no quarto trazendo a sopa que deve estar quente:
- Meu filho, você está muito abatido. Vou pedir a seu pai para chamar o médico outra vez... Os remédios não estão adiantando... A gripe vira pneumonia...
- Não, não precisa. Amanhã estarei bom. Agora quero dormir. Dormirei bastante. Estou cansado.
Dorme até que o dia surja outra vez em sua janela, trazendo um gosto de suor, um suor que cheira a convalescença e pecado.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 05/03/2004