O ministro Tarso Genro supera, na sua pasta, a opção entre achar e fazer. O primeiro ano do Governo Lula mereceu do líder gaúcho uma das reflexões mais agudas do que fosse a saída do idealismo, para entregar-se à exigência da mudança. Deu-nos a busca do que fosse “uma esquerda em processo”, no avanço realista de um projeto de transformação social que demora, parece desgarrar-se mas não se rende. A ambição desses resultados, na área específica da educação, supõe, inclusive, a amplitude polêmica, como a entendeu Cristovam Buarque, como um ingrediente da tomada de consciência que já é parte mesmo de uma ação que persiga a verdadeira diferença no recado do Governo.
São múltiplas as instâncias, fóruns, cenáculos em que o ministro poderá partir para a implantação da reforma do terceiro grau. Esse desiderato brasileiro tem o lugar cativo da utopia na nossa cabeça e nele se instala como o seu próprio mito. É sua a rotina própria das tarefas inconclusas, em que se purgam uma visão ideal de políticas públicas, o voluntarismo das mudanças e seu permanente recomeço. Ela se agudiza, exatamente, quando a mudança, como agora, se torna viável e se a antecipa na perspectiva sem concessão de seus cenários. No cerne desse perene embate estarão as redefinições da autonomia universitária, das condições de decisão dos seus corpus coletivos, do âmbito da universidade pública e do caráter gratuito da sua prestação. Ou do fomento aos turnos noturnos de seus campi.
Nas entrelinhas desse vastíssimo e repetido ementário, vão, entretanto, aflorar as questões da prática-prática do atual estado da arte do nosso ensino superior, numa agenda invisível, a que se voltará a sagacidade do ministro no atender a essas urgências, em medidas paralelas a toda volta às reformas e sua polêmica exaustiva. É hoje de 76% a dominância da universidade privada no quadro do desenvolvimento brasileiro, e 2/3 da freqüência da universidade pública se encontram nos grupos das classes A e B, de detenção da renda nacional.
Toda a atual política tendente ao regime de cotas para sobrepor-se à dita “elitização social” do campus dá-se conta de estar criando um sentimento de discriminação intracampus para os favorecidos. Pende ainda uma decisão básica do Supremo Tribunal Federal quanto à legitimidade da discriminação, em benefício dos mais necessitados, frente ao indistinto direito à educação que garante a Carta Magna.
Mais importante, entretanto, na agenda invisível é a massa de candidatos potenciais ao terceiro grau, que cursaram toda a escola secundária pública que não têm condições não só de se candidatar aos preços da escola superior privada, mas, inclusive, de disporem dos recursos mínimos de transporte ou sustento para se permitir o acesso às rotinas do ensino. Hoje, numa população de 4,3 milhões de estudantes capazes, no mesmo ano, de entrar na universidade, um milhão e meio ficam nessas condições objetivas do estudante sem acesso. É dificílimo que, como reiterado no primeiro ano de governo, a expansão da disponibilidade de espaço e professorado na universidade pública possa acolher tal contingente.
A medida inovadora se voltaria à experiência do microcrédito, envolvendo a rede bancária privada e a Caixa Econômica como avalista, de modo a ensejar em mensalidades adequadas o curso na rede privada, dentro das condições do orçamento básico do pretendente. Noutras palavras, trata-se de mensurar das suas condições de pagamento, pois as classes mais pobres são as mais pontuais no dar conta, mesmo a perder de vista, do que contrataram.
Como vai o Governo resolver o problema dessa enorme orfandade universitária, em solução que exorbita o âmbito da pasta, para assegurar um mecanismo crítico para a mobilidade social ampla do país? E como se ajustará a universidade privada que hoje, inclusive, pode ter objetivo de lucro frente à pretensão natural, ao serviço “pelo custo”, em que se inclua uma remuneração do capital mas não o benefício elástico das vantagens de mercado?
Como continua a ser indissociável na universidade brasileira a relação entre o ensino e a pesquisa, não fugirá o Ministério à nova contradição, que é a de que, dependendo desta mesma pesquisa, dos fundos setoriais, estes, via de regra, só contemplam os campi públicos. Vão as universidades privadas, na sua enorme maioria, ficar no padrão meramente da preleção, ou se assegura um acesso generalizado a esses recursos, inclusive, e de vez, distinguindo-se, para merecer o direito à autonomia, a verdadeira universidade e os atuais ditos centros universitários?
Tempos de globalização, por fim, são já, e para nós, o da decisão da OMC (Organização Mundial do Comércio), que definitivamente reconheceu os serviços de educação no seu âmbito, e dentro dele podendo ser objeto de aquisição internacional, ou compra e venda de seu capital societário, até quem sabe com cotações e propostas em bolsas externas. Os escritórios dessa corretagem já estão em todo o país, mais na modalidade de compras de ativos a perigo, para revendas lucrativas. Nem rimará com a economia globalizada hoje pôr-se travo ou controle a um começo de conglomerados de ensino internacionais, nesse corolário sem volta da economia de mercado, em que ingressamos na atual conjuntura.
Fazem parte também desse cenário as novas economias de escala, em que a força de expansão na universidade privada configura possíveis riscos ao pressuposto da competição democrática que garante a Carta Magna. Presume-se o futuro da educação no contraponto entre o ensino público e privado tradicional. Mas o regime de concentração do empreendimento particular já impõe a garantia daquele pluralismo de princípio, com lugar, e segurança, para a universidade confessional, a comunitária, a privada sem finalidade de lucro. O Governo “que faz” põe em processo o Governo que acha. Tarso Genro tem as cicatrizes da prática-prática, para voltar-se também à outra agenda, ao lado do permanente debate da reforma universitária, seu luxo e seu brio.
Jornal do Commercio (RJ) 12/3/2004