Está a Inglaterra comemorando o centenário de nascimento de Graham Greene, com a costumeira série de artigos sobre a obra do autor e reedições de seus livros. Para Greene, convertido ao catolicismo quando tinha 22 anos, o pecado era o maior dos males.
No seu melhor romance, "O coração da matéria", que tem como fundo a África Ocidental, o que caracteriza a ação dramática da trama é a certeza da condenação pelo pecado. Jean Roy vê, em Greene, um cristianismo da danação, num misto de fé e desespero que pode levar um homem à loucura. Ou ao suicídio, que é a solução escolhida por Scobie, o personagem principal de "O coração da matéria".
Se Chesterton e Belloc foram os alegres defensores da ortodoxia do catolicismo, Greene é o homem curvado sob a responsabilidade da lei, num equivalente ficcional de outro católico da Inglaterra, o poeta Francis Thompson, cujos versos religiosos tinham toques de satanismo.
Quase todos os romances de Graham Greene têm um elemento policial, de uma pesquisa para punir o pecador. Seus personagens sentem, no inesperado normal das coisas, a iminência de que toda essa estrutura de carne e de idéias se desfaça e a morte chegue, exata como pedra que cai.
De sentimento idêntico, tiraram os gregos suas tragédias, criando uma forma de arte que exprimia, com precisão, o espanto do homem diante da fraqueza do indivíduo no meio das forças da vida. Nos tempos modernos, veio o romance policial a ser a comum expressão desse espanto.
É o elemento policial de "O coração da matéria" que acentua a atmosfera dramática do romance. Angustiado foi também Poe, o criador do policial moderno. Não só angustiado, mas com o sentimento permanente de um fracasso inevitável. Greene detém-se dolorosamente diante da tragédia secreta de Scobie e, através dela, mostra os meandros de uma intranqüilidade normal em qualquer tempo.
Nas horas decisivas - as que realmente têm um poder sobre o pensamento - o homem está só. Eliminadas as camadas de hábitos, desejos, convenções e apegos, o homem fica nu, sem uma palavra que o reaproxima da vida. O romancista Greene revela, em "O coração da matéria", esse despencar do homem das bordas frágeis de sua transitoriedade, esse cair nas sombras do pensamento, em sucessivos parênteses de solidão.
A importante pesquisa empreendida por Husserl, em sua desintegração fenomenológica, deixa uma parte mínima da pessoa humana inteiramente despida de qualquer atavio. Nenhum enfeite, nenhuma ocultação para preservar o que se considera como o íntimo de uma pessoa.
A cada momento dessa busca, Husserl põe alguma coisa entre parênteses, até que a consciência de ser consiga emergir dos elementos conquistados e ficar dolorosamente só, independente das aquisições da experiência.
Não há propriamente uma relação direta entre as idéias de Husserl e a técnica literária de Graham Greene. Acontece apenas que toda conquista filosófica de um tempo sai do conjunto de idéias da época e passa a ser partilhada por todos os que dela tomam conhecimento - e escritores, artistas da imagem, músicos podem sentí-las com uma pungência alheia à dos sistematizadores.
No caso de Scobie, a sociedade não o condenaria pelos seus atos, mas o personagem de Greene não se guia apenas por leis convencionais de conduta. Matar um homem, roubar, tudo isto merece castigo. Contudo há crimes não tão evidentes que o homem comete a cada instante, crimes contra o ser, contra a pessoa humana, crimes do pensamento contra Deus.
O sentimento que o romancista Graham Greene tem de Deus é mais de angústia do que de alegria. Compreende a imensa responsabilidade do seu reconhecimento, com a certeza de que, existindo Deus, ele, o pequeno homem que escreve, nada pode fazer para se tornar digno desse conhecimento. Daí, o cristianismo policial de Greene, na sua torturante percepção de que, no menor dos gestos, há uma possibilidade real de eterno sofrimento.
Scobie é o grande solitário. Vê-se colocado no centro de várias emoções, torna-se a convergência de muitas vidas que lhe exigem uma decisão de ser e de agir. Pode ter preferido não haver pecado, mas sabe que é impossível esquecer que pecou. Sabe também que ninguém pode ajudá-lo. Está só, qualquer ajuda será outro pecado porque só ele, sozinho, conhece o coração da matéria, o fundo do assunto, e só ele poderá encontrar uma solução para o seu uso.
Só ele sabe tudo o que foi feito e o que tem de ser feito, com amor. Porque este, "O coração da matéria", é um romance de amor. Como poucos outros. Romance de amor e dessa permanente e essencial solidão que pode existir no momento da morte. E é no mistério de sua solidão desgarrada que o personagem de Graham Greene penetra, anjo decaído, contudo lúcido. Ao mesmo tempo vítima e beneficiário do amor, herdeiro talvez do perdão.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 17/03/2004