Há setenta três anos, uma gráfica provinciana publicava o primeiro livro de uma jovem, edição particular, paga pela própria autora. "Descreva bem a sua aldeia e descreverás o mundo" - aconselhava um romancista russo. A jovem de 19 anos, isolada no sertão cearense, não conhecia a frase. Mesmo assim, na capa de seus originais, escreveu simplesmente: "O Quinze", referindo-se à maneira nordestina ao ano de 1915, e, por extensão, à seca daquele ano. A seca que invadiu seu romance e, em seguida, a literatura nacional.
O ciclo regionalista, que se constituiria num do mais fecundos do Brasil, teria seu começo, em conteúdo e forma, naquele pequeno-grande romance da professora cearense de 19 anos: Em todos os sentidos, uma obra-prima, continuada mais tarde nos melhores momentos de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado, a santíssima trindade do nosso romance regional.
"O Quinze" não fez sucesso na crítica cearense, mas estourou no Rio e em São Paulo. Augusto Frederico Schmidt deu um salto à frente de sua época e dedicou ao romance famoso artigo.
A história é conhecida: Rachel não ficou na promessa e foi à luta. Publicou novos romances (João Miguel, Caminho das Pedras, As Três Marias, Dora, Doralina, Memorial de Maria Moura), tornou-se cronista, fez teatro. Em conjunto, uma obra de consistência clara, atuante, sedimentada numa dignidade que se tornou um dos raros consensos nacionais. Em poema bastante badalado, Manuel Bandeira chamou-a de "nata e flor do nosso povo" e louvou o seu amor de tia. Outros a preferem chamar de "madrinha" - e, em certo sentido, ela é realmente uma espécie de madrinha de todos os que escrevem neste País.
Basta uma releitura de "O Quinze" para sentirmos a segurança com que a moça de 19 anos, num distante Ceará que só nos chegava pelos Itas do norte, invadiu o cenário e a literatura do Brasil. Seu estilo é enxuto, sem bordados. "Passava quase todo o dia na Estação, alegre como uma feira, cheia de gente como uma missa."
O que difere Rachel de seus irmãos regionalistas (Zé Lins, Graciliano e Jorge Amado) é uma certa penumbra machadiana: "Tanta fome, tanta sede, tanto sol". Tanta Rachel.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 05/11/2003