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O assombro das noites

 

Nunca esqueci a noite em que, acordando de um pesadelo, vi luz acesa na sala e fui ver quem estava lá. Ajoelhada diante da mesa, cabeça baixa, terço nas mãos, tia Zizinha rezava, madrugada alta, tudo em silêncio, ela magrinha, parecia um passarinho molhado, sentindo frio.


Era devota a minha tia, não devia ficar impressionado, mesmo assim fiquei. Sabia que ela rezava por todos nós, por mim, pelo meu avô que estava doente, pelo mundo inteiro. Evitei que ela me visse e voltei para a cama, perdera o medo do pesadelo, sabia que os fantasmas não mais me assustariam.


Anos depois, muitos anos depois, viajava com o Otto Maria Carpeaux, fazíamos palestras agendadas por diretórios de estudantes, centros de estudos, era um mambembe não remunerado e estranhíssimo, pois Carpeaux era gago, eu falava mal e pronunciava as palavras de forma errada, mesmo assim, havia gente que deseja nos ouvir.


Em Florianópolis, num hotel modesto, acordei no meio da noite e olhei para cama ao lado. Estava vazia. Carpeaux sofria de insônia, imaginei que ele, sem fazer barulho, na ponta dos pés, tivesse saído do quarto, tomando cuidado para não me acordar.


Não acendi a luz mas saí da cama, fui à saleta anexa ao quarto, que também estava escura. Voltado contra a parede, numa direção que eu não podia determinar (Roma? Meca? Jerusalém?) Carpeaux estava de joelhos, cabeça baixa, os braços estendidos, como um anacoreta medieval, perdido num deserto sem estrelas.


Carpeaux era judeu vienense, convertera-se ao catolicismo, segundo alguns, para conseguir um visto no Vaticano que o tirasse da Gestapo que o procurava. Eu sabia tudo sobre Carpeaux, menos o seu passado europeu, sobre o qual ele nunca falava. Não freqüentava igrejas, evitava qualquer discussão sobre temas religiosos.


Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e ficarei de joelhos, diante de meus espantos.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro -RJ) em 19/11/2003

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro -RJ) em, 19/11/2003