Deixei o hospital com a mesma roupa com a qual fora atropelado. O terno estava razoavelmente limpo, pois, apesar da violência do choque, pouco se rasgara. A sujeira não era muita, apesar das manchas de sangue. Com o tempo, não mais pareciam sangue, mas café. Eu entornara um bule de café nas costas e nas calças -nada mais do que isso. Meu aspecto não devia ser agradável, nunca o fora, mas não chegava ainda a ser repugnante.
Andava mal. O fato é que precisava fazer um esforço suplementar para manter-me em pé, sem quedas e vacilações. Impossível caminhar normalmente: como um bêbado, eu me esforçava para não cair pelas tabelas.
Por tudo isso e por cautela imposta pelas circunstâncias, andava devagar, muito devagar, as pernas bem abertas, concentrado na tarefa de ir avante e, se possível, em linha reta -e, se possível, para algum lugar.
Fui para casa. O que chamava de casa (e pior, o que considerava minha "casa") era um quarto pequenino num velho sobrado da rua do Catete. Um pardieiro parecido comigo, caindo aos pedaços, ao qual se subia através de uma escada em farrapos. Na porta de baixo, rente à rua, funcionava um engraxate, com sua cadeira elevada parecendo uma privada comprida feita de madeira.
Era um prédio característico do bairro e da rua. Embaixo, uma loja de móveis usados. Em cima, quartos separados por tabiques de madeira. Ali funcionavam um fazedor de chaves, uma loja que consertava ferros de engomar, um camarada que trocava colarinhos puídos, um protético homossexual e dois ou três quartos avulsos, alugados a cavalheiros de fino trato -segundo exigência da locatária. Eu era um dos cavalheiros de fino trato, pagava mais ou menos em dia o meu aluguel e não costumava levar putas para dormir comigo.
Encontrei a porta do quarto fechada. Fiz um gesto involuntário, como se procurasse as chaves no bolso, mas logo percebi que seria inútil. Na confusão do acidente, depois dos meses que passara no hospital, elas poderiam estar em qualquer parte do mundo, dentro do Taj Mahal, no túmulo do Soldado Desconhecido, menos em meus bolsos.
Nem tive tempo de imprecar contra o azar: o vizinho do lado - justamente o protético - apareceu no corredor e avisou-me que o quarto estava alugado a outro cavalheiro de fino trato, um lituano que vendia baralhos pornográficos. Pelo menos, foi isso o que entendi. Proferi alguns palavrões desnecessários, pois o protético não tinha culpa naquilo, embora, no fundo, eu soubesse que ele estava satisfeito com a minha desgraça. Não me perguntou onde eu tinha andado nem estranhou o meu modo de caminhar. Também nada lhe informei, não só porque não é do meu hábito dar informações, como também por se tratar de um protético.
Procurei pela locatária, que morava num dos quartos dos fundos. Ela me recebeu com desprezo: eu passara dois meses fora, sem dar notícias nem satisfações. Devia-lhe já outros dois meses e só poderia retirar as minhas coisas se pagasse tudo até o último centavo, inclusive uma conta de luz extra -no dia do acidente, esquecera uma lâmpada acesa.
A mulher estava furiosa - o que era um fato banal em sua vida - e ficou mais furiosa quando constatou que eu estava sem um tostão.
- Vou vender as suas roupas e tudo o que o senhor deixou! Não estou aqui para sustentar vagabundos!
Como fui o primeiro a reconhecer a própria miserabilidade, pedi que ao menos me deixasse mudar de roupa, pois estava sujo e rasgado. Ela exigia:
- Primeiro pague!
Não adiantava insistir. Nem apelar para a solidariedade dos demais vizinhos. Se promovesse um plebiscito a respeito, seria derrotado, o protético seria o primeiro a votar contra e a cabalar votos contrários. Além de protético, era um sacana.
Sabendo disso, estiquei o pescoço e consegui ver, por cima do ombro da mulher, os meus trecos jogados num canto de seu quarto. Eram duas malas pequenas e velhas, um cinzeiro, um pequenino abajur de cabeceira, um guarda-chuva, algumas peças de cama, cuecas, um par de sapatos que não coubera dentro das malas e um quadro que, inexplicavelmente, me acompanha há tempos: umas andorinhas voando simetricamente em cima de uns telhados.
Não sei como me tornei proprietário daquela obra de arte. O fato é que havia muitos anos que o quadro me acompanhava e, por alguma obscura razão que nunca pesquisei, sempre o levava comigo em minhas mudanças. Era um quadro inútil, pois nunca o pendurara em parede nenhuma -na verdade, nunca tive uma parede que pudesse chamar de minha- e o seu natural destino era ficar embaixo da cama.
Apesar dessa inutilidade e um pouco por pirraça, para não sair completamente derrotado, tentei negociar ao menos o quadro, mas ela fechou a cara e a questão. Nada. Só poderia levar qualquer coisa depois de pagar os meses em atraso. Afinal, desanimei de barganhar. Além de inútil, seria cansativo. Acrescentar um quadro de andorinhas ao quadro de minhas desgraças seria mais do que uma extravagância. Seria um pleonasmo.
Folha de São Paulo (São Paulo) 17/06/2005