O romance de Lia Persona, "Uma luta pela vida", pega o sofrimento humano num de seus aspectos mais dolorosos. Em primeiro lugar porque mostra a luta de um menino contra as dificuldades múltiplas : de andar, de falar, de ouvir, de pensar. Ao descrever como um corpo de criança é dominado por um sem-número de males, atinge a romancista um nível seguro de narração, usando o contraponto de um diário, da própria narradora, como espelho em que se refletem suas certezas e suas dúvidas.
Outro ângulo, pelo qual seu romance pode ser incorporado integralmente por quem o lê, está no levantar um ideal de enfermagem, em que a palavra "cuidar" assume sentido abrangente e total.
O estilo de Lia Persona é ao mesmo tempo, e com igual intensidade, pleno e plano. Cada frase sua mostra, com direiteza, o menino inserido em sua clausura, em que quase total fechamento à vida que fluía fora dele. Como curar aquela criança, que não era dela, mas que não podia abandonar?
O menino parecia mais um bicho do que um ser humano. Levou o garoto para sua casa e assim o descreve: "Seu corpo caquético expelia um odor fétido. Quando chegou, precisou abrir todas as janelas da sua casa para facilitar a circulação do ar e não ficar nauseada. Nunca sentira um cheiro tão saturado de podridão em sua vida. Seu corpo denotava estar em processo de putrefação ainda vivo."
Queria adotá-lo para cuidar dele, mas custou a conseguir o que desejava porque a burocracia, que não podia ajudá-lo, impunha obstáculos para evitar que alguém o fizesse. Numa boa técnica narrativa, Lia Persona intercala então seu diálogo com um diário, começando sempre com um "Querido Diário". Exprime então suas dúvidas e seus desejos: como "cuidar" realmente, de verdade e com sucesso, daquele menino sem o uso completo de nenhuma das sete maravilhas do mundo.
Conta de um professor que perguntou a seus alunos quais seriam as sete maravilhas do mundo. A lista comum indicava as Pirâmides do Egito, o Taj Mahal, o Grande Canyon, o Canal do Panamá, o Empire State Building, a Basílica de São Pedro, as Muralhas da China. Uma aluna, porém, respondeu que estava em dúvida sobre quais eram de fato as sete maravilhas. O professor insistiu em que dissesse em quais maravilhas pensava.
A menina respondeu : "Eu acho que as sete maravilhas do mundo são ver, ouvir, tocar, saborear, sentir, rir, e amar". Ao longo de todo o seu livro, a autora interrompe sua narrativa para fazer considerações a respeito do menino que está sob sua responsabilidade, e esse contraponto mostra-se inteiramente adequado à pungência de sua história. O desenvolvimento das relações entre a enfermeira e a criança é mostrado com toda clareza, não dando a impressão de ser o livro simplesmente um romance escrito, mas, sim, o registro dos momentos de um ser humano que avança na direção do entendimento.
Primeiro, era necessário que o menino aprendesse a segurar os objetos, que aprendesse a aceitar o alimento e a mostrar-se feliz com isto. A enfermeira descobre que o corpo fala mais do que as palavras. Pelos seus movimentos, pelo modo como levanta a mão ou o ombro, ou agita os braços, o corpo fala. Diz a autora, firmada na sua experiência com o menino : "... a linguagem verbal é apenas uma percentagem do que transmitimos numa comunicação."
Outro aspecto importante no viver uma vida normal vem a ser o reconhecimento de que há, em tudo e a cada etapa de um avanço, uma seqüência de acontecimentos e que todos aguardamos, vivemos, cada instante de uma seqüência dada - domingo - segunda-feira, entrar - sair de qualquer lugar, por comida num prato e comer sentar - levantar-se - e que, embora não prestemos a atenção a cada mudança que fazemos, é nessa rotina que pousamos nosso equilíbrio.
No meio da mesmice de uma jornada surge, para o menino imperfeito, algo que o prende ao chão: a música. O caso do escritor sueco Artur Lundqvist que passou dois meses em coma profundo mas que, durante esse tempo, ouvia canções e poemas que sua mulher cantava e lia para ele. Embora os médicos não esperassem que ele voltasse ao normal, pois voltou, para narrar que durante todo o tempo do coma, ouvia a mulher cantando, o que o ajudou a regressar.
O entrosamento, que se torna maior no final do livro, entre a autora e seu diário, é de bela feitura literária. É como se o "diário" fosse o conjunto de seus leitores futuros aos quais ela percebesse que devia dar satisfação.
"Uma luta pela vida " é um hino de amor a própria. Apresenta-se também como um testemunho do que vem a ser a verdadeira profissão de enfermagem, no esforço de mandar a doença embora e na dedicação a quem sofre. É justo que este livro integre a coleção "Anjos de Branco".
Ela foi criada exatamente para isto: chamar a atenção do maior número possível de pessoas para aquelas que se curvam sobre as fraquezas da carne, no esforço de restaurar alguma ou algumas das sete maravilhas que possam estar faltando no corpo de uma pessoa.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro -RJ) em 26/11/2003