Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Machado de Assis e a Selic

Machado de Assis e a Selic

 

Qualquer relação entre Machado de Assis e a taxa de juros Selic pode parecer estranha, mas não é. Machadólogos, historiadores e economistas que me perdoem, mas pretendo demonstrar que o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras também pode ser chamado para dar sua opinião no debate sobre as taxas de juros hoje praticadas no Brasil.


A discussão vem de longe. Em meados do século 19 - vamos precisar a data: 1859, quando Machado andava pelos seus 20 anos - no país monocultor e exportador de café, os problemas do câmbio, desenvolvimento econômico e inflação não eram menos complicados do que os de hoje. E Machado de Assis, à época conhecido como Machadinho, resolveu meter-se na discussão da política econômica do Império.


No artigo A odisséia econômica do sr. ministro da Fazenda, publicado a 26 de junho de 1859 em O Paraíba - editado por Augusto Emílio Zaluar em Petrópolis -, Machado ataca duramente o citado ministro, Francisco de Sales Torres Homem, do gabinete conservador do Visconde de Abaeté, pela política de contenção do crédito então adotada, que substituíra a de expansão financeira do ministro anterior, o liberal Souza Franco.


Este parece ter sido o primeiro e último artigo polêmico de Machado, que na maturidade detestava polêmicas. Mas quem era o alvo dos ataques do jovem Machadinho? Panfletário talentoso, competente e corajoso, formado nas hostes liberais, Francisco de Sales Torres Homem passou uma temporada na França em 1833 para estudar economia política e sistemas financeiros. De volta ao Brasil, apoiou a insurreição, reprimida pelo futuro Duque de Caxias, e foi deportado para Lisboa.


Anistiado em 1848, escreveu o panfleto O libelo do povo sob o pseudônimo de Timandro, para muitos historiadores um dos mais avançados textos do liberalismo de sua geração. A metralhadora giratória de Torres Homem disparou não só contra o jovem monarca Pedro II e todos os Bragança que o antecederam, mas também contra a Imperatriz Tereza Cristina, do ramo Bourbon de Nápoles, com ferinas alusões à sua origem.


Mas o tempo passou e Timandro pediu que esquecessem o que escrevera. Em artigos publicados no Jornal do Commercio, sob o pseudônimo de Veritas, atacou o programa do liberal Marquês de Olinda, cujo ministro da Fazenda, Souza Franco, estabelecera a pluralidade bancária. Souza Franco autorizou o Banco do Brasil, outros bancos e até sociedades comanditárias a emitir títulos sem lastro, o que Torres Homem considerava um ''carnaval financeiro''. Ainda liberal, mas em oposição à política econômica do seu partido, Torres Homem exigia a contenção dos gastos públicos, o controle do crédito e juros altos, para evitar a inflação.


Com o apoio de Pedro II, que não gostava de audácias econômicas, os conservadores derrubaram o gabinete liberal Olinda-Souza Franco. O visconde de Abaeté passa a chefiar o governo e convida Torres Homem para a Fazenda. Convite aceito, o monarca recebe seu adversário para o beija-mão e o Timandro arrependido, depois do perdão imperial, pede-lhe a graça de uma audiência com a Imperatriz. Pedro II responde que ele não se lembrava dos agravos, mas a Imperatriz era mulher, e mulher napolitana; Sua Majestade jamais esqueceria as ofensas.


Pedro II gostou da política econômica do gabinete conservador e, agradecido pelos seus serviços, concedeu-lhe o título de Visconde de Inhomirim. Línguas ferinas viram embutida, no título, vingança tardia: em um só nome o Imperador uniu diminutivos de dois idiomas: inho, em português, e mirim, em tupi-guarani.


Mas Machadinho, indignado com a contenção do crédito, resolve atacar Torres Homem por sua mudança: ''O homem moral do Sr. Torres Homem sofreu uma transformação e não é certo aquele mesmo que tão ardente parecia no apostolado das liberdades públicas. Esse projeto com que o atual ministro pretende aniquilar o crédito tem um só vislumbre das idéias que animavam aquele Graco de tantas páginas vigorosas? O sr. ministro da Fazenda pretende de certo apresentar meia dúzia de artigos à sua obra-prima financeira, à sua odisséia econômica. Para um espírito sensato não passa isso de um grosseiro golpe sobre o crédito. E uma pretensão vaidosa do ministro que pretende aniquilar uma garantia garantida pela lei e pela necessidade pública''.


Nesse artigo, Machadinho despejou vários adjetivos depreciativos contra Torres Homem, mas, por falta de espaço, vamos ficar por aqui. E vale lembrar que a história é antiga: quanto mais mudamos, mais permanecemos na mesma. Assim, um Machado de Assis atualíssimo brada do século 19 contra Torres Homem, mas também para que o ouçam os ouvidos moucos dos que hoje estrangulam a economia impondo-lhe juros extorsivos para controlar o consumo, sob o pretexto de evitar a inflação. Esquecendo mais uma vez da anedota do cavalo do inglês, que morreu quando aprendeu a jejuar.


Mas é bom lembrar que neste caso, o cavalo somos nós.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 31/03/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 31/03/2004