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Poupando energias

 

Era imponente o tio Zé. Trabalhava a semana inteira, médico de clínica geral, dava três expedientes por dia. Pela manhã, o Hospital Miguel Couto, até o meio-dia. À tarde, o consultório particular em Botafogo, na rua Conde de Irajá, uma clientela miúda, mais para pobre do que para remediada. À noite, plantão numa Casa de Saúde da classe média, na Tijuca.


Nada de admirar que, ao visitá-lo, nos fins de semana, as sobrinhas pisassem na ponta dos pés pela casa do tio Zé. Tia Alice botava o dedo indicador na ponta dos lábios e pedia silêncio, ninguém podia fazer barulho, tio Zé estava poupando energias.


Poupar energias para o tio Zé era um ritual complicado como uma missa solene a quatro vozes, ou como eleição de grão-mestre numa loja maçônica. Ele se estirava na cama, os braços abertos como um crucificado, o quarto às escuras, não fazia nenhum movimento, tia Alice vinha com o almoço e o jantar, alimentava o marido como se desse comida a um inválido.

Para beber água, havia o canudinho de plástico, dobrado na ponta, tio Zé nem podia se sentar na cama, poupava energias.


As sobrinhas cresceram e descobriram que tio Zé de fato trabalhava muito. Assinava ponto no Miguel Couto e se mandava para a casa de Taís, onde almoçava. À tarde, ia para o consultório, que mantinha com uma colega de faculdade. Não atendia a nenhum cliente, que não os tinha. À noite, na Casa de Saúde, examinava às pressas as guias de internação do INSS e se mandava para o Arpège, onde Waldir Calmon tocava boleros e ele sempre se defendia com aquilo que antigamente chamavam de "dama da noite".


Tio Zé tinha um bom apartamento, carro, um terreno em Saquarema, de frente pata o mar. Como ele administrava tudo isso foi um mistério para as sobrinhas. De tanto poupar energia aos sábados e domingos, ele conseguia o impossível.


Quando morreu, de complicações na próstata, deixou para as sobrinhas o terreno em Saquarema.


 


Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 01/04/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em, 01/04/2004