Reza a venerável sabedoria popular que, quando o destino nos traz um limão, devemos, em vez de reclamar, fazer uma doce limonada. Venho pensando nisso há tempos e creio que já estamos produzindo diversas limonadas, mas sem planejamento e coordenação adequados. É natural: certas coisas ficam tão patentemente à vista que não as notamos. Apegamo-nos, como está mais ou menos na moda dizer, a velhos paradigmas. Mas é necessário mudar, é preciso que removamos os véus antigos que nos toldam a vista, ou não chegaremos nem perto da prosperidade sempre almejada e perenemente adiada. Abandonemos pudores descabidos, que só fazem atrapalhar. O mundo de hoje, regido pelo mercado, impõe a revisão de valores anacrônicos, irrelevantes e aliados do atraso a que parecemos condenados.
São muito visíveis certos dados da famosa realidade nacional: a corrupção, a violência e a insegurança. Acreditam os que se apegam aos paradigmas superados que devemos eliminar essas características marcantes da nossa existência coletiva. Mas será que os que pensam de forma tão mesozóica não vêem que isso tem sido impossível, ao longo de toda a nossa História? Não estaria mais do que na hora de abandonar velhas convicções voluntaristas, infundadas e indemonstráveis? Essas convicções só contribuem para um distúrbio de personalidade: somos uma coisa e teimamos em querer ser outra, com todo o rosário de frustrações que isso acarreta.
Façamos uma tentativa, embora necessariamente esquemática, de observar como, por exemplo, a violência e a insegurança são hoje elementos indispensáveis à nossa já precária condição econômica, porque, como se vê nos jornais o tempo todo, exportamos muito, somos os reis dos negócios agrícolas, o FMI nos ama e o espetáculo do crescimento só está esperando os atores chegarem, mas a verdade é que cada vez se pode comprar menos e cada vez aumenta o desemprego. Enquanto isso, silenciosa e injustiçada, a nossa mais indomável vocação econômica, alicerçada na miraculosa criatividade com que a Providência dadivou os brasileiros, é que vem movimentando milhões ou bilhões de dólares, apesar das circunstâncias ingratamente adversas que arrosta. Basta pensar um pouco para ver como a bandidagem, no sentido mais lato do termo, é uma poderosa alavanca de desenvolvimento econômico. Às vezes fico olhando assim para o Brasil e me admiro como são cegos os que não percebem que lutar contra essa bandidagem é não somente inútil como pode prejudicar milhões de brasileiros, de empresários a operários, que hoje retiram dela seu sustento.
Faltam os cálculos, mas sobram exemplos. Quantos serão os brasileiros que exercem a função, oficial ou não, de seguranças? Centenas de milhares, milhões talvez. Para onde iria esse pessoal, se se pudesse viver sem ameaças? Já pensaram no gravíssimo problema social deflagrado pela desocupação dos homens e mulheres que trabalham diretamente na segurança de empresas, entidades, ruas e pessoas? Que fim levariam eles, engrossando a já insuportável massa de desempregados? Ou seja, não seria irresponsável o governante que, vamos dizer, investido de poderes miraculosos, apertasse um botão e acabasse de chofre com a necessidade de seguranças? Que calamidade não adviria, quantas famílias não seriam destruídas? Até a polícia sofreria, pois é sabido que muitos policiais complementam sua parca renda com o desempenho de funções particulares de segurança.
E a indústria e o comércio? Ninguém pensa na indústria e no comércio antibandidagem, mas eles são inestimavelmente importantes na nossa economia. Não tenho idéia de valores ou percentuais, mas há razões para crer que hoje um dos setores que mais crescem no parque industrial brasileiro é o especializado em blindagem de automóveis. Não é só numa São Paulo infestada dos nordestinos sanguissedentos que preocuparam o ex-ministro Graziano que a blindagem de carros fatura cada vez mais. É no Brasil, todo, inclusive no próprio Nordeste, que não exporta todos os seus bandidos para São Paulo, mas também para outros estados, além de conservar muitos em sua própria região.
E os circuitos internos de televisão? Quantos sistemas não são vendidos e instalados por dia? Já imaginaram o que significa isso para técnicos, projetistas, cientistas, instaladores e fabricantes de todo tipo de equipamento ligado ao ramo? No caso, isso não só representa empregos, mas também, com toda a certeza, avanço tecnológico, porque tenho certeza de que, hoje em dia, nossos circuitos internos já se enfileiram entre os mais avançados do mundo e devem estar sendo exportados para o Paraguai, o Haiti e um sem-número de outros fregueses necessitados. E os transportadores a frete, que agora, como se lê também nos jornais, são contratados para fazer o transporte ordeiro do que se furta de residências saqueadas? E as profissões, de grampeador de telefone a tomador de lugar em filas de velhos moribundos no INSS? E quantas famílias não são sustentadas pelo suor incompreendido de aviões e vapores do tráfico de drogas, jovens que do contrário estariam excluídos do mercado de trabalho, mesmo que inexplicavelmente informal?
Claro, apenas arranhei o assunto. É, digamos, uma provocação. Mas uma provocação de fito positivo, uma sacudida no pensamento inercial que vem tolhendo nossos líderes. Há sempre o lado bom das coisas, que teimamos em não ver, por afeição quase supersticiosa a padrões ultrapassados. Vamos abrir os olhos e lançar os preconceitos aos ventos. Não acho a noção de bandidagem participativa tão exótica assim, o Brasil é que não pode continuar a perder o bonde da História, amarrado a premissas errôneas.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 04/04/2004