Instalou-se o Conselho Nacional de Magistratura, como conquista sofrida, e não menos determinada, do aperfeiçoamento institucional do País. Tratava-se de reconhecer, de vez, o princípio talvez mais difícil para se lograr esta funcionalização das estruturas de poder, em bem das reais e diferentes prestações do Estado. Entregue, tão-só, às próprias corporações, este exercício se endurece na letargia inevitável de sua inércia e, sobretudo, nos facilitários ou nas indulgências que o administram.
O controle externo desbarata estas fixações, põe o exercício da função pública sobre a mirada diferente que pode sempre guardar a perspectiva real de uma denúncia ou de uma intervenção. Este "vis-à-vis" do poder tem sido a última conquista da melhoria democrática, buscada hoje internacionalmente para os modelos de efetiva estabilização social, e de real permeio entre o Estado e a sociedade. Claro, nessa agenda dos ganhos de pontos internacionais, de uma democracia para valer e ficar, juntam-se hoje a repetição das eleições e ao sufrágio direto, o respeito às minorias, o acato crescente aos direitos humanos, ou ao recurso mais repetido aos plebiscitos.
No repertório desses avanços, numa contabilidade internacional, o Brasil é dos primeiros países do continente que introduz, finalmente, pelo Conselho, um jogo de checks and balances entre os poderes, envolvendo o único impermeável às eleições e, portanto, no julgamento popular, à renovação, ou não, dos mandatos presidenciais, do Executivo ou das assembléias. Justamente, a inamovibilidade, de há muito consagrada como a garantia de independência ao Judiciário, imporia, ao mesmo tempo, os remédios contra a cristalização de seu exercício na rotina das tarefas deixadas ao mero controle intestino de sua eficiência.
Inquieta, entretanto, que o começo do novo regime ainda se marque muito mais por uma visão passiva do Conselho, constituindo-se como órgão recebedor de denúncias enquanto instância de provisão de um exercício indiscriminado de uma ouvidoria popular. Aguarda-se, sim, que o novo órgão possa, por sua própria iniciativa, proceder às melhorias intrínsecas da prestação Judiciária, abrindo-se a análise de efetivos modelos desta prestação; inquirindo dos bloqueios de seu fluxo e, sobretudo, da demora de suas conclusões, já que sentenças definitivas se trocam pelas liminares perpétuas, ou pelas dilações de recursos.
Os institutos de opinião pública têm cada vez mais detectado uma insatisfação nacional com o funcionamento mesmo, e intrínseco, das instituições. E, nelas, a visão quase cínica quanto à força da justiça se soma aos impasses de um projeto de governo no Executivo, ou de um Congresso mais preocupado com a cosanostra do que com a República.
De toda forma, os pontos ganhos pelo Conselho respondem no plano da lei a uma consciência política pela validação continuada da democracia profunda. E tal acontece num cenário cada vez mais desolador, no continente, não só quanto à consolidação do regime democrático, mas à própria validade da idéia das instituições políticas, como a presunção da estabilidade e da paz social. Que dia da semana que vem começará a derrubada na Bolívia do Governo da semana passada?
A subsistência desses regimes se conta por dias, até o ânimo da próxima e rotineira vinda às ruas. Retomar as marchas pode custar mais que qualquer esforço previsível de resistência das guardas palacianas. E as lideranças emergentes não deixam qualquer dúvida sobre a profundidade da ruptura social a que chegou esse sistema, minado pelos desequilíbrios de riqueza, pelo abuso de modelos neoliberais, e pelo fato consumado da dependência externa destas economias.
O líder da tribo dos aimarás não deixa dúvidas quanto ao clima continuado de sublevação. Debaixo de cada poncho está um braço armado. Há que, de fato, tomar o poder e de assalto, em bem finalmente, mais do que do povo, até do constitutivo étnico da sua maioria, vista como a dos seus indígenas, num sentimento misto de profunda identidade nacional e de marginalização continuada às instituições. O novo surto de quebra democrática e em pleno risco de o fazer, denuncia até os aliados da véspera na luta contra o sistema estabelecido: Evo Morales, o líder dos cocaleros, é visto já como apaniguado da série dos três presidentes ainda do formalismo democrático, e de uma temporalização como status quo.
O significativo é que este clamor não é apenas o do poder ao indígena, mas de sua associação à tese radical da nacionalização dos hidrocarbonetos, na afirmação de um estatismo-limite em confronto com a realpolitik dos modelos econômicos da Bolívia até agora. Os prazos são de dias, emprestados por estas lideranças ao governo instalado nos balcões do Palácio Quemado, em La Paz, tanto quanto não voltemos obstáculos às estradas bolivianas. A deterioração política se transformou do corolário final do modelo econômico. Mas não é mais o clamor por uma restauração democrática que move as massas como se se tratasse de corrupção apenas, ou mau funcionamento apenas, do sistema. A Bolívia que foi às ruas passa a ficar em casa, tanto estivesse em causa uma abstrata defesa de um melhor modelo político. A defesa da democracia não responde mais para os aimaras e seus companheiros ao que seja a nova verdade identitária que querem trazer ao poder. Sem álibis de qualquer retorno ao Estado de Direito, ou aos imperativos da proclamada vontade popular.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 24/06/2005