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O espírito das leis

 

Já tinha visto coisa parecida, mas em forma de filme, sem equivalência com a vida real. Um sujeito mata a mulher. Policiais, advogados, mídia, opinião pública, aquilo que costumam chamar por aí de "sociedade" ficam traumatizados pelas circunstâncias que envolveram o assassinato.


Dentro dos códigos, testemunhas depõem, provas são coligidas e, evidentemente, aparece um criminoso. As leis garantem ampla defesa ao acusado. Na reta final, o placar (culpado/inocente) está empatado. O juiz convida os jurados a se retirarem para a sala secreta, a fim de decidir se o réu matou ou não matou a mulher, se merece ou não ser condenado.


Nisso, trazido por um advogado ou pela consciência, surge no tribunal nada mais nada menos do que a vítima, a mulher cujo assassinato está sendo julgado. Impossível prova maior de que não houve crime, de que ninguém matou a mulher, que prova estar viva.


Aí entra o absurdo dos processos, não apenas os penais, mas todo e qualquer processo. O prazo para a apresentação de mais uma testemunha está esgotado, ainda que a bastante presença da vítima prove que não houve crime. Alega-se que não houve tempo para a contestação, logo, o depoimento não merece mais ser considerado.


Nos filmes, que não estão comprometidos com os códigos, o julgamento é suspenso: se não houve crime, não pode ter havido criminoso. Final feliz, "the end".


Na vida real, como no caso do julgamento do Zé Dirceu, de certa forma houve coisa semelhante, mas às avessas. O testemunho mais contundente do processo foi desqualificado porque foi dado fora da ordem legal. Devia ter aparecido antes, para possibilitar oportunidade ao contraditório. Montesquieu escreveu sobre o espírito das leis. Há a máxima nos evangelhos, segundo a qual a letra mata, o espírito vivifica.




Folha de São Paulo (São Paulo) 04/12/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 04/12/2005