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A gíria que está na moda

 

Muitos jornais repetiram a frase de Fernando Henrique Cardoso: "O PT está mais bêbado do que peru na véspera de Carnaval." Eu sabia que, em nossa terra, costuma-se embebedar o peru na véspera de Natal, mas o ex-presidente, que pensa que pode tudo, mudou a época. Recebeu críticas de todo lado. Abstraindo-se o fato de ser ex-presidente, o que exige um certo recato na linguagem, FHC valeu-se de um lugar comum para exagerar no ataque ao partido adversário. Teria utilizado gíria?


O conceito é amplo, como demonstra com muita propriedade o jornalista e escritor J.B. Serra e Gurgel, amigo dos velhos tempos de jornalismo, que agora chega à sétima edição do seu conhecido livro dedicado às gírias praticadas na língua portuguesa.


Deixando FHC de lado, podemos classificar de utilíssimo o trabalho do amigo. Paciente como um chinês (todos os chineses são pacientes?), Serra e Gurgel, que hoje vive em Brasília, relacionou um sem-número de gírias, até porque cada região tem as suas próprias características, no manejo da nossa língua.


Tive o privilégio de conviver muitos anos com a figura admirável do Acadêmico R. Magalhães Jr. Chegávamos cedo à redação da Revista Manchete e antes que o expediente pesado tivesse início, o que ocorria a partir das 9 horas, repassávamos os nossos assuntos, pessoais e profissionais, como dois bons amigos, embora a distância da idade fingisse nos separar.


Era uma grande e solidária figura humana, além de pesquisador emérito. E lembro que R. Magalhães Jr., também teatrólogo, falava do seu interesse pela gíria brasileira. Certamente para colocar nos seus diálogos teatrais, pois não seria para uso nas sessões literárias da Academia Brasileira de Letras, onde se pratica predominantemente a norma culta de nosso vernáculo.


Faço essas considerações a propósito do trabalho do jornalista, antropólogo e pesquisador J.B. Serra e Gurgel, um homem sério em tudo o que faz (e faz bem). Suas raízes de formação hão de tê-lo induzido à realização da obra, que agora atinge a glória da sétima edição. Costumo dizer que o vestibular do escritor está na passagem da primeira para a segunda edição, quando o público aprova o trabalho e lhe dá consagração.


Encontrei Serra e Gurgel, depois de um bom tempo sem nos vermos. Ele vive em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, eu no Rio de Janeiro. Seus olhos brilharam quando falou no seu Dicionário de Gíria: "Mestre Arnaldo, é um sonho que se realiza!". Concordo com ele e apenas discordei quando me disse que "a gíria agride a língua-padrão".


Lembrei-me do utilizadíssimo ditado "vox populi, vox Dei" (voz do povo, voz de Deus). Se o o nosso povo (não somente os malandros) encurta a distância entre o falar e o compreender através da gíria, como anular a sua existência ou condená-la sumariamente?


A gíria não é um modismo lingüístico utilizado apenas pelas camadas mais pobres da população. Incorporou-se aos usos e costumes do nosso vernáculo, não sendo justo qualificá-la como expressão de segunda categoria. Pelo menos esse é o meu pensamento.


A obra é rica de signos e significados. Concordo com a observação do autor do que ela "é manifestação da língua viva", representando apreciável vertente do nosso vernáculo. Se assim não fosse, como justificar a inclusão de tantas expressões de uso corrente no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, obra elaborada pelo filólogo Antonio Houaiss para a Academia Brasileira de Letras? São mais de 350 mil verbetes cadastrados, muitos dos quais relativos ao que se convencionou chamar de gíria brasileira.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 05/06/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 05/06/2005