As câmeras de segurança podem ajudar a polícia e proteger propriedades, mas também podem fazer as pessoas se sentirem violadas e incomodadas. Folha Informática, 27.abr.2005
Não era exatamente um trabalho muito excitante: ele supervisionava o funcionamento de cerca de 20 câmeras de segurança espalhadas numa área da cidade muito sujeita a assaltos (bancos, lojas elegantes). Sua tarefa era certificar-se de que as câmeras estavam captando e gravando adequadamente imagens que, eventualmente, poderiam servir de prova contra criminosos e delinqüentes.
A mulher, jovem e ambiciosa, achava esse trabalho um lixo. Como o marido ganhava pouco, tinham de morar num apartamento minúsculo e andar de ônibus, quando o sonho dela era ter uma mansão cheia de criados e desfilar pela cidade num carrão importado. Se isto não acontecia, era só por causa dele. "Você é um incompetente", dizia. "Você nunca serviu para coisa alguma, seus amigos de infância hoje são ricos executivos, enquanto você fica aí fazendo esse trabalho de voyeur."
Ele optava por ignorar as sarcásticas observações, mesmo porque tinha certeza de que, um dia, seu trabalho seria reconhecido. Um dia ocorreria um assalto espetacular a um dos bancos ou a uma das lojas. Ele identificaria os bandidos, seu nome apareceria nos jornais. E aí a mulher finalmente teria de admitir seu erro. Mas, enquanto isso, sucediam-se os bate-bocas e uma noite, irritado, ele acabou batendo nela. "Vou me vingar", ela prometeu, enxugando o sangue que corria do lábio partido.
Um mês depois um dos bancos vigiados pelas câmeras foi assaltado. De madrugada os ladrões entraram por uma loja ao lado e, muito profissionais, arrombaram o cofre, levando todo o dinheiro. Pela manhã ele foi chamado com urgência pelo chefe: precisava examinar as gravações feitas pelas câmeras. Certamente os bandidos apareciam ali.
Sem demora começou a trabalhar e, de fato, uma das câmeras captara o momento em que os criminosos, três, saíam do banco, carregando as sacolas com dinheiro. Mas seria difícil identificá-los: todos estavam com capuzes na cabeça. Que droga, ele resmungou, enquanto observava aquilo, mas então sentiu um baque no coração: junto com os assaltantes, havia uma mulher. Esta não usava capuz. Ao contrário, olhava fixamente para a câmera, sorrindo ironicamente. Ele imediatamente a reconheceu. Não tinha como não reconhecê-la: era sua mulher.
Deletou as imagens. Ao chefe, disse que algum problema acontecera com a câmera, e que nada fora registrado. A tecnologia é assim: quando menos se espera, ela nos trai.
Folha de São Paulo (São Paulo) 02/05/2005