Toda biografia é de certo modo romanceada. A autobiografia também. Quem escreve e descreve o que foi vida de outrem insere sempre no seu trabalho sua própria experiência de vida e/ou sua interpretação dos acontecimentos narrados.
O mesmo acontece, e até em maior grau, com a autobiografia, em que o autor, como dono de sua própria vida, pode sentir-se à vontade para interpretar as ações de que haja participado. É, assim, natural que Letícia May e Euda Alvim classifiquem o livro de ambas - "Quem contará as pequenas histórias?" - como "biografia romanceada de Augusto Frederico Schmidt".
Diga-se, antes de tudo, que se trata de um livro necessário. Não só como poeta - embora principalmente como poeta - mas também como empresário e homem público, precisávamos de um levantamento de sua vida, de sua obra e de sua participação na política do País. O brasileiro Augusto Frederico Schmidt começou a aparecer como editor, como integrante de um movimento que revelava nomes até então desconhecidos.
Antes, nos anos 20, participaria do ambiente revolucionário em que se pregavam mudanças, inclusive a que agitava os católicos (Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima), quando Schmidt participou do grupo de Alceu. Após a morte de Jackson, passou a dirigir a Livraria Católica.
Em 1930, Schmidt começaria a fazer história. Fundou a Schmidt Editora e lançou a nova literatura brasileira. Sem exagero. Publicou o primeiro livro de Jorge Amado, "O país do Carnaval", publicou "A mulher que fugiu de Gomorra", de José Geraldo Vieira, e "João Miguel", de Rachel de Queiroz. Schmidt lançou, de sua pequena editora, mais os seguintes livros: "Caetés", de Graciliano Ramos; "Casa grande senzala", Gilberto Freyre; "Oscarina", de Marques Rebelo; "Maquiavel e o Brasil", de Otávio de Faria; "Maleita", de Lúcio Cardoso; "Caminho para a distância", de Vinicius de Moraes.
Como se vê, poucas pessoas participaram tão ativamente da nova literatura brasileira da época. Contudo, era Schmidt atacado pela "pequenez" de seus lançamentos, houve os que disseram e escreveram que ele estava lançando gente sem o menor valor. Diante da lista de livros por ele editados e aqui citados, sabemos hoje que o então mais ou menos desconhecido Schmidt (estava com 30 e poucos anos) empurrava o Brasil para a frente com suas edições.
Há que falar de Augusto Frederico Schmidt como poeta. Que o foi, e dos melhores de seu tempo. Seu poema de Natal é citado como típico entre seus versos: "Caminharei em busca do presépio, Senhor./ Não haverá nenhuma estrela/ Para guiar meus passos.// Mas estarei tão atrasado,/ O tempo terá caminhado tão na minha frente." "Muitos rirão de mim sabendo que te procuro.
E eis um poema de amor de Schmidt: "Meu amor, a noite cai aos poucos/ Sobre mim, aos poucos sobre mim / E é como terra/ Sobre corpo de morto". O ensaísta belga Karel Jonkheere diz que os poetas flamengos desconfiam do grito, da falta da medida. Jamais se exaltam. O brasileiro Augusto Frederico Schmidt, ao contrário, aos gritos e na maior falta de medida, como que desnuda o nervo de sua canção e de seu ritmo.
Daí a força de sua poesia e o tom doloroso de seus poemas de amor. Seus versos se alongam, estabanados, turbadamente límpidos, no instável domínio do grito que não se contém. É, a sua, uma poesia inconsutilmente ligada ao pensamento brasileiro. Poesia, por isto, permanente, enquanto houver memória da cultura dos que vivem em nossa terra.
O livro fala também dos outros e múltiplos Schmidts: o empresário, o homem de ação, o político, o criador dos supermercados brasileiros (também nisto ele abriu caminho). No governo Juscelino, Schmidt criou a Operação Pan-Americana (OPA), que tentava ampliar a influência brasileira no Continente. Participou de inúmeras iniciativas, mas não deixava de ser o poeta. Numa reunião de negócios em 1953, quando o assunto ficou insuportavelmente sem a menor saída, levantou-se e gritou: "Pára tudo! Isso é muito enervante! Vamos ler uma poesia."
Uma das páginas mais fortes do livro de Letícia Mey e Euda Alvim é a que descreve a visita feita por Schmidt ao presidente Getúlio Vargas em 23 de agosto de 1954, véspera do suicídio. O texto é de Schmidt: "A 23 de agosto de 1954, compareci eu ao Palácio do Catete afim de entregar ao presidente Vargas o relatório da Missão Klein & Saks sobre o problema da alimentação no Brasil. Conversamos também sobre a situação, todos contra Getúlio, o que poderia acontecer?
Palavras de Getúlio: "Sei que a situação é grave, mas mesmo assim estou tranqüilo. Eu sei o que devo fazer e para onde vou e é por isto que lhe digo que estou tranqüilo. Vou numa só direção e para a frente. Quando, enfim, decidimos e sabemos para onde vamos e o que devemos fazer, isso nos tranqüiliza."
Schmidt deixou registrado, em diário: "Reservara-me o destino vê-lo, observá-lo, sentir o seu drama no momento em que sua estrela extraordinária se estava apagando..." A tese do Brasil Grande, que Schmidt lançou e defendeu a vida inteira, fixou-a ele numa "Declaração Pan-Americana" que é, na realidade, um poema em 64 linhas (na verdade, 64 versos). Schmidt morreu em 1965. Sua poesia continua.
QUEM CONTARÁ AS PEQUENAS HISTÓRIAS?, de Letícia Mey e Euda Alvim, é um livro que traz a este milênio uma figura de brasileiro que lutou para que o País fosse melhor e maior. Vale a pena ser lido pelo muito que revela daquele tempo, em cenas que podem ser tidas também como deste nosso tempo. Lançamento da Editora Globo, preparação de Eugênio Vinci de Moraes, revisão de Ricardo Jensen de Oliveira, Valquiria Della Pozza, Ana Maria Barbosa e Ronaldo Polito. Capa do Estúdio Darshan, foto de capa: Praia de Ipanema (Peter Timmermans/Getty Images), foto da contracapa: Augusto Frederico Schmidt (Editora Três).
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 03/05/2005