Os trabalhos legislativos corriam em Brasília, mornos e monótonos no fim daquela tarde de 3 de setembro de 1968, quando o deputado Marcio Moreira Alves, falando no ''pinga-fogo'', pronunciou um discurso que bem poderia ter ficado inédito, porque proferido para um plenário vazio e que constaria de um registro sem o menor destaque ou importância no Diário do Congresso. Dizia ele mais ou menos o seguinte:
- Com a proximidade do 7 de setembro, a ditadura certamente vai determinar que os colégios participem do desfile militar. Apelo para que os pais não permitam aos seus filhos marcharem ao lado dos carrascos que os agridem e os fuzilam nas ruas. E proponho às moças que não dancem com os cadetes no baile da Independência.
Por coincidência, justamente naquela semana estava sendo encenada, em São Paulo, a comédia grega Lisístrata, de Aristófanes, com a história das atenienses que fecharam as portas de suas casas para os maridos derrotados na volta de uma batalha. Interpretou-se o discurso como uma insinuação para que as brasileiras se fechassem (sic) aos oficiais, seus maridos, numa interpretação absurdamente sexual.
Os militares da linha ''dura'' estavam precisando de um pretexto e aquele era simplesmente ótimo. O discurso foi reproduzido em milhares de cópias mimeografadas e distribuídas em todos os quartéis e guarnições.
Os ministros do Exército, Aeronáutica e Marinha - Lyra Tavares, Márcio Melo e Rademaker - exigiram um processo contra o deputado, que o ministro da Justiça, Gama e Silva, transformou imediatamente num pedido de licença para cassação do seu mandato. Realizaram-se então muitas negociações entre o Palácio do Planalto e a Comissão de Constituição e Justiça, que tinha de dar seu parecer sobre o pedido de licença e que era presidida por Djalma Marinho, um corajoso deputado lá do Rio Grande do Norte.
Nesse ínterim, a polícia, que vinha espionando de perto todos os passos dos promotores do 30º Congresso Nacional dos Estudantes, marcado para o dia 14 de outubro em Ibiúna, conseguiu surpreender os seus organizadores e invadiu o recinto do conclave, prendendo em flagrante, numa detalhada operação, os principais líderes da UNE: José Dirceu, José Travassos e Vladimir Palmeira, além de dezenas dos 700 delegados presentes. Esgueirando-se por um portão nos fundos do sítio, Jean Marc van der Weide foi um dos únicos a escapar do cerco policial.
Enquanto isto, realizavam-se as negociações entre o Planalto e a CCJ. Duas sugestões foram aí feitas e recusadas:
1. A do senador Daniel Krieger, líder do governo no Senado, para uma punição intramuros do parlamentar, que sofreria uma espécie de advertência, interna corporis, em vez de uma cassação.
2. E a do deputado Djalma Marinho, que propunha o adiamento da decisão para março seguinte, após as férias legislativas, quando os parlamentares teriam oportunidade de consultar suas bases e regressar a Brasília com mais elementos que ensejassem uma solução do impasse. (Essa idéia foi inicialmente aceita pelo próprio marechal Costa e Silva, mas depois recusada pelo ministro Gama e Silva).
Com o fracasso de ambas as sugestões, o senador Krieger renunciou à liderança no Senado, refugiando-se em sua fazenda Lami, a 37km de Porto Alegre. O deputado Djalma Marinho, após recusar um dramático e comovente apelo do senador Dinarte Mariz, renunciou à presidência da Comissão, pronunciando um histórico discurso:
- Na minha sofrida vida pública, como representante de um pequeno estado, tenho mantido fidelidade à ordem democrática. Ao longo do tempo, mesmo na minha humildade, a ela ofereci a minha vassalagem, mas nunca o atendimento a exigências e concessões absurdas, como esta. Passada a tormenta e esclarecidos os homens, virá o tempo da reconstrução. Rejeitar este pedido é um ato de bravura moral, igual àquele oferecido por Pedro Calderón de La Barca: ''Ao rei tudo, menos a honra''.
Sem o seu presidente, a Comissão de Justiça já havia estrategicamente substituído vários deputados da Arena contrários à concessão da licença e deu parecer favorável a ela, por 17 votos contra 9. A votação no plenário foi marcada para o dia 12 de dezembro, acusando o seguinte resultado: 141 votos a favor da licença, 24 abstenções e 12 em branco. A maioria de 216 votos, estimulada pelo discurso de Djalma, recusou a sua concessão, num ato de ousada e surpreendente coragem.
Derrotado, o governo militar reagiu no dia seguinte, 13 de dezembro de 1968, há quase 36 anos, portanto, decretando o AI-5, com todo aquele cortejo de violências, seqüestros, torturas, cassações e prisões.
Uma densa e prolongada noite de trevas iria abater-se sobre o país, mas restaria para sempre aquele valente protesto e aquela sábia advertência de Djalma Marinho, meu conterrâneo e um exemplo para toda a sua geração, que foi inspirar-se no grande teatrólogo madrilenho do Século 17:
- Ao rei (Costa e Silva), tudo, menos a honra (minha).
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 21/04/2004