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E onde fica a incompetência?

 

Às vezes a gente tem a impressão de que o Brasil é o país mais explicado do mundo. Talvez seja mesmo, até porque se trata de um hábito nacional buscar entender como uma terra tão extensa e rica parece hoje sem esperanças a tantos de nós. A colonização portuguesa, no momento um pouco esquecida, já serviu de explicação principal durante muito tempo. E não relacionada a fatores históricos pouco levados em consideração, ou mesmo ignorados, mas a noções que, de tão primárias, somente denunciam o preconceito ou a desinformação de quem as perfilha. Portugal, um país minúsculo e de população pequena, chegou, durante muito tempo, a ser uma das potências mundiais mais importantes e, no entanto, seu povo seria congenitamente incapaz. Desde pequeno, ouço como teria sido tão melhor se houvéssemos sido colonizados pelos holandeses, pelos ingleses, pelos franceses e assim por diante. Aí, sim, seria sangue bom, herança genética superior, que nos teria assegurado o desenvolvimento que jamais tivemos e talvez jamais venhamos a ter.


Certamente ainda há muita gente que acha isso e não vou entrar nessa discussão abestalhada. Quem quiser continuar pensando assim que pense e persista em amaldiçoar nossa desdita lusitana, como se as circunstâncias em que foi ocupada a Nova Inglaterra, na América do Norte, tivessem sido as mesmas que as nossas, como se a História do mundo não tivesse sido condicionada por tantos outros fatos e como se raça (?) tivesse alguma importância que não a que lhe foi emprestada por motivos muito diferentes dos relacionados a desmoralizadas diferenças de aptidão. Além disso, a calamidade que vem avassalando o Rio de Janeiro (e o Brasil todo, de uma forma ou de outra) faz até quem tem ódio da colonização portuguesa sentir-se perdendo tempo agora, porque as explicações remotas não resolvem e há urgência para explicações próximas, que resultem em pelo menos algumas soluções.


A pobreza é talvez a mais utilizada das explicações. Lendo-se o que se escreve sobre o assunto, é freqüente a conclusão de que ela é a causa principal da violência que, no Rio de Janeiro de hoje (e, insisto, em todo o Brasil, de várias formas, algumas das quais nem sequer são mais notadas ou comentadas), chega a proporções inacreditáveis. Que a pobreza, como também se diz muito, é bom caldo de cultura para a violência não há como contestar. Pobreza é até mesmo, embora todos neguem santimonialmente, vergonhoso defeito pessoal. Note-se (e nesta observação, preciso dizer que não estou sendo nem um pouquinho original, pois pelo menos Bernard Shaw já a fez há muitas décadas) que a frase feita é “pobre, porém honesto”. Por que “porém”? Se pobreza não fosse defeito, a conjunção não seria adversativa, a frase seria “pobre e honesto”. “Rico, porém honesto” seria talvez menos inadequado.


A pobreza é, sim, terreno fértil para a violência. Mas não é causa. Se fosse, as taxas de violência dos muitos países bem mais miseráveis que o nosso seriam muitíssimo maiores. E não haveria tanta violência na nação mais rica do mundo, os Estados Unidos, a terra dos guns of Columbine , dos assassinatos em massa e das eliminações de presidentes e líderes políticos. Ser pobre ou viver no meio da pobreza não leva necessariamente a uma cultura da violência. Ela surge de outras fontes, de muitas e variadas origens, que as ciências sociais não conseguem elucidar, tamanha a complexidade da natureza, das relações e das culturas humanas. Não é porque há pobres demais que se mata tanto e se cometem tantos outros tipos de violência. O buraco é mais embaixo e essa relação linear serve mais é para mascarar os outros elementos que se aliam e fortalecem a violência, talvez bem mais que a pobreza. Ser pobre é defeito, de acordo com o dito popular, mas não quer dizer ser criminoso ou violento, não existe isso, dessa forma grosseiramente simplificada. É fácil falar e não sei o que faria se me visse na miséria, com minha família faminta e desabrigada. Mas há miseráveis que enfrentam privações graves e até morrem à míngua, sem recorrer à violência ou ao crime - e certamente são, ao menos por enquanto, a maioria entre eles.


Outra explicação crescente é que a violência, por gerar-se largamente no tráfico de drogas, é sustentada pelos consumidores. Verdade. Mas isso também acontece em outros grandes centros consumidores de drogas e a maior parte deles não está na situação do Rio de Janeiro, cidade sitiada, ameaçada, dividida, neurotizada, seviciada e refém de uma situação que só parece agravar-se. Ela resiste, ela tem força, ela quer sobreviver, ela tem espírito, ela tem bravura e tradição, mas a luta é cada vez mais dura e o que parece a quem lê os jornais é que vem sendo perdida. Quem sustenta o tráfico e o crime a ele relacionado é o consumidor de drogas ilícitas, mas isso não explica o nosso descalabro, é apenas um aspecto, importante como possa ser.


Isso tudo foi para perguntar onde, nesse quadro, fica a incompetência administrativa e política. Onde ficam a irresponsabilidade, a incúria, a impunidade, a corrupção e o desprezo pelos valores elementares da convivência humana? Onde ficam governantes que metem os pés pelas mãos, não têm políticas ou programas definidos, perdem-se em brigas eleitoreiras, refocilam-se no fisiologismo, regozijam-se em falsas promessas e, enfim, não produzem nada além de lero-lero e improvisos atabalhoados? E que dizer de um presidente que até pode viver muito ocupado, mas aparentemente não trabalha no que deve, não despacha, não resolve, não toma a frente, não inspira mais ninguém, não mobiliza, não sabe comandar equipes ou partidos e cujo governo, como eu já disse aqui uma vez e repito, parece que não começou ainda? Sim, temos de vencer a pobreza, temos de reduzir drasticamente o consumo de drogas e a criminalidade, mas para isso não precisamos de governo?


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 25/04/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 25/04/2004