Semana passada, numa palestra em Fortaleza, perguntaram-me sobre a necessidade de um melhor diálogo da igreja com a sociedade. É evidente que não sou autoridade nem tenho especial interesse no assunto, mas questionei as duas palavras-chaves da pergunta: "sociedade" e "diálogo". No caso específico da igreja, ela se preocupa não com a sociedade, mas com a humanidade, que é a mesma desde que o mundo foi criado e habitado por mais de um homem. Houve um papa, não sei se João 23 ou Paulo 6º, que lembrou ser a igreja uma "expert" em homem. É isso aí.
Quanto à sociedade, o próprio fundador do cristianismo a ignorou, pregando não para ela, mas para a humanidade, da qual seus crentes até hoje o consideram salvador. Ele próprio afirmou que a sua pessoa, o seu reino, a sua fundação não eram deste mundo, embora estivessem no mundo e, no caso da igreja, fosse ela constituída por mundanos, ou seja, por homens, sujeitos aos mil acidentes da história e da carne.
A outra palavra, "diálogo", vem sendo usada, abusada e até mesmo profanada em determinadas situações. Já foi dito por gente mais ilustre, como Schopenhauer e Nietzsche, que ninguém muda a opinião de ninguém. Por questão de educação, conveniência ou fadiga, aceita-se a argumentação do contraditório, mas nenhum argumento é suficientemente forte para modificar a soma de conceitos, preconceitos e intuições que cada um formou ao longo da vida. E usamos hoje a palavra diálogo como um eufemismo de "convencer". Quatro prisioneiros de uma tribo de antropófagos estão ao lado do caldeirão que os assará. Os selvagens começam a festa, abrindo o apetite com cantorias e danças. Um dos prisioneiros recebe dos demais a missão de ir "dialogar" com os esfomeados.
No caso da igreja, ela tem um púlpito para pregar o que julga necessário. Ainda que só tenha um fiel ou que não tenha nem isso, o púlpito lá está e, dentro dele, a mensagem que ela guarda há 2.000 anos. Quem não quiser ouvi-la tem a porta do templo aberta. Lutero foi embora por essa porta quando visitou Roma e, em outra porta, na catedral de Wittenberg, afixou sua bula, rompendo com a igreja e com o papa, criando outro púlpito, mais liberal, mais moderno, que deu lugar a outros e numerosos púlpitos, que acabaram até no púlpito eletrônico do bispo Macedo. (De forma bem mais modesta, eu também saí pela mesma porta.)
Volto à palestra de Fortaleza. Os dois termos da pergunta, igreja e sociedade, mereciam ser explicitados. Que tipo de igreja sobrevive no século 21? Ela é perfeita, irretocável? É evidente que não. Mas isso é problema exclusivo dela, de seus papas, bispos, concílios, sínodos, de sua tradição baseada numa respeitável literatura patrística. Se está ou não adequada à sociedade, o problema é saber que tipo de sociedade é esse, ou seja, a sociedade atual, pois houve centenas de sociedades que também se consideraram o estágio mais avançado da civilização, da ciência, da técnica e da moral.
E fica a pergunta: a sociedade atual é flor que se cheire? Basta abrirmos um jornal, ligarmos o rádio ou a TV, basta abrirmos a janela que dá para a rua ou olharmos para dentro de nossa própria casa, para dentro de nós mesmos, para ficarmos sabendo (se antes não o sabíamos) que estamos longe daquilo que poderíamos chamar de sociedade ideal ou de algo próximo disso.
Só para ficar em fatos e coisas recentes: a invasão do Iraque, o atentado ao World Trade Center, a chacina na Baixada Fluminense, a suposta pedofilia do Michael Jackson, a eleição do Severino -a lista seria infinita se houvesse a necessidade de provar que a sociedade na qual vivemos não merece ser levada a sério.
Sim, temos avanços notáveis -a roda inventada pelo sumérios, as caravelas dos descobridores do século 16, o celular, a internet, o barbeador de três lâminas, o peru congelado que já vem com um termômetro no peito para apitar na hora em que estiver pronto. Grande e admirável mundo novo!
Mais sintomático do que o barbeador de três lâminas e do que o peru com termômetro no peito, os entendidos descobriram que as ações e palavras devem ser politicamente corretas, adequadas à sociedade correta em que vivemos. O poema de Jorge de Lima "Essa Nêga Fulô" deverá ser recitado como "Essa Afrodescendente Fulô". E a obra prima do folclore gaúcho "O Negrinho do Pastoreio" será corrigido para "O Afrodescendente do Pastoreio". De hora em hora, a sociedade melhora?
No caso específico da igreja, ela terá de se modificar tanto e tamanhamente que uma de suas mais belas antífonas, que ela herdou do Velho Testamento, seria atualizada para dialogar com a sociedade correta. No "Cântico dos Cânticos", onde o ritual cristão foi buscar dezenas de citações, está o maravilhoso verso atribuído a Salomão: "Sou negra e formosa, por isso o rei me amou e me introduziu em sua alcova". Além de substituir o "negra" por "afrodescendente", terão de trocar o rei pelo presidente da República. A sociedade politicamente correta não é monárquica. Só serão tolerados os quatro reis do baralho.
Folha de São Paulo (São Paulo) 06/05/2005