Quando não tenho nada o que fazer, o que é mais ou menos freqüente para os meus lados, gosto de mexer em guardados, não mais por curiosidade, que não a tenho, mas por necessidade de compreender o processo que me transformou naquilo que sou, contra a minha vontade e, muitas vezes, contra o meu próprio interesse.
Outro dia, numa velha caixa de charutos Partagas Supercoronas, encontrei um apito de madeira, daqueles que eram vendidos nas quitandas de antigamente, alguns eram de barro, os mais eficientes eram mesmo de madeira ou metal.
Para que serviam? Os tempos eram mais tranqüilos, as casas tinham, ao lado da placa de numeração, geralmente em azul e branco, uma outra placa, vermelha, com as iniciais: VN. Significava, “vigilância noturna”. Pelas noites mais antigas do passado, um guarda-noturno passava pelas ruas, apitando de quando em quando o seu apito. Era a ronda, era o apito que afugentava os ladrões, geralmente de galinhas. Dava à sociedade em geral uma tranqüilidade gostosa, dormíamos em paz sabendo que o guarda-noturno velava pelo nosso sono, pelas nossas galinhas.
Além dessa proteção vinda de fora para dentro, da rua para casa, havia em cada mesinha de cabeceira um apito igual ao que encontrei entre os guardados de minha mãe.
Em emergência, em situação de perigo, quando um barulho parecia forçar uma porta ou janela, e muitas vezes não era nada, era apenas o vento, ou quando as galinhas ficavam excitadas no quintal, ou um cachorro latia num terreno distante, era hora de pegar o apito e apitar. Mesmo que o guarda-noturno não aparecesse logo, o ladrão se escafedia, ninguém podia contra aquele som generoso e profilático que cortava o silêncio da noite, da noite mais antiga do passado.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) 03/05/2004