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A magia de um romance

 

Com a força de uma tempestade, abre Nélida Piñon um horizonte novo em sua obra e na própria ficção brasileira de nosso tempo. Com "Vozes do deserto" - romance inteiriço, como talhado em pedra - promove a romancista um ritmo de narrativa diferente em que, por exemplo, não há um só diálogo. Contudo, todos os incidentes da história parecem consistir num só diálogo.


Narradora? Sim, há uma narradora no livro, mas a narração parece vir de dentro contada por um Deus que dirigisse o desenrolar dos acontecimentos e usasse o talento da romancista para mostrar Scherezade e o Califa no seu caso de amor, que amor foi (durou mil-e-uma noites: muitos amores não duram tanto).


Na bela tradição da cultura árabe, poucas histórias terão tido a abrangência humana desta, em que a iminência da morte no cadafalso pesa sobre todas as vítimas da concupiscência de um Califa. Era uma noite de amor, seguida, a manhã seguinte, pela morte da fêmea, vingança permanente do rei por haver uma vez sido traído por mulher.


No estilo de Nélida Piñon, narrar é como tecer com as palavras, unir personagens e acontecimentos com linhas que, negras ou douradas, prendem as histórias e apresentam-nas como submetidas a uma espécie de magia, alimentadas por momentos de suspense e súbitas mudanças no caminhar do enredo.


Há trechos de "Vozes do deserto" em que a narrativa se comprime em parágrafos isolados, como que escondidos embaixo de almofadas orientais, de intenso colorido, em bilhetes dirigidos ao destino e aos criadores de caminhos, entrelaçados nos pedaços de tempo e de espaço que nos cercam a todos.


Nélida revela como Scherezade, junto com sua irmã Dinazarda e com a escrava Fátima, passam a morar no palácio do Califa.


Era um desafio: dormir uma noite com o rei, começar a contar-lhe histórias que não terminariam naquela noite e obrigariam a mais uma noite, e mais outra, e mais outra, para mostrar ao Califa um mundo que ele não conhecia, inclusive o do povo nos mercados de Bagdá e as histórias antigas de outras regiões do mundo.


Na seqüência de noites de sexo, todas as mil-e-uma noites da história, Scherezade aprimora seu talento de contar casos ou, como informa Nélida, "nunca se cansa de se entregar à irremediável volúpia de contar histórias, como se encetasse uma peregrinação a Meca ou a Medina, segundo a direção que tomasse".


A identificação entre tempos diferentes, com seus personagens e suas tendências, aparece no romance de Nélida Piñon de modo constante, ligando culturas e "assumindo a carnadura de todos os heróis cujas lendas pousaram na lembrança dos homens".


A presença de Atenas no mundo de Scherezade dá à narrativa neliana uma universalidade que é natural à cultura. Diz a narradora, definindo a outra, a da noite-após-noite:


"O Oriente é uma vertigem em sua alma. Por força desta atração, Scherezade mergulha na memória arcaica e dos arcanos de outras latitudes, revive enigmas históricos, como o encontro de Príamo com Aquiles, após a morte de Heitor. E o reproduz com riqueza de detalhes, dando realce, por pura solidariedade feminina, aos lamentos de Andrômeda e de Hécuba, mulheres golpeadas pela dor. Aquele momento único em que o rei de Tróia, ajoelhado diante do altivo filho de Tétis, reclama os despojos mortais do príncipe Heitor".


Também o Santo Graal, símbolo de toda uma fase do Cristianismo, aparece nas histórias de Scherezade, juntamente com os símbolos da cultura árabe. Simbad e Aladim ocupam uma parte heróica na narrativa que a mulher foi transmitindo ao Califa, falando, falando, antes que a madrugada chegasse e a cadafalso fosse mantido longe dela.


A cada crepúsculo era preciso que Scherezade estivesse pronta para, depois do ato do amor, pegar sua história no ponto que a havia deixado na manhã anterior. Toda a atividade verbal de Scherezade e o romance de Nélida Piñon representam a vitória da palavra, a palavra que é a base da narrativa como é a base do pensamento, do amor, do ódio e da contação geral de histórias que vivemos todos trocando entre nós, ouvindo-as, lendo-as, guardando-as, numa permanente imitação da história que vivemos cada um, nos encontros e desencontros do dia-a-dia.


"Vozes do deserto", de Nélida Piñon, é um lançamento da Editora Record. Projeto gráfico de Evelyn Grumach. Ilustração da capa de Sarkis Ratchdourian. "Orelha" de Alfredo Bosi. Livro composto na tipologia Caslon 540, em corpo 11/16, papel Chamois Fine Dunas 80g/m2.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 04/05/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 04/05/2004