A “Queda do Muro de Berlim”, com a dissolução da União Soviética, foi um marco decisivo da história contemporânea, assinalando o ponto culminante de um processo político-econômico que vinha se desenvolvendo de maneira irreversível.
Até então ainda se discutia sobre a sobrevivência de algumas teses que, formuladas nas últimas décadas do século 19, pareciam vencedoras ao longo da passada centúria, que bem poderia ser denominada a “era dos conflitos”.
Foi Karl Marx o pensador que mais profundamente apresentou as causas ou razões de inexoráveis contrastes e confrontos na sociedade universal, que determinariam, a um só tempo, o advento da “ditadura do proletariado”, como resultado da luta de classes, e o superamento dos Estados nacionais, com o fim do capitalismo.
O fim da União Soviética pôs termo a esses vaticínios, com a derrocada do “socialismo real”, que, no dizer de Raymond Aron, se transformara no “ópio dos intelectuais”, tal a força com que os dominava nos planos teórico e prático.
É necessário não esquecer quais eram os conflitos considerados fatais, com absoluto predomínio dos valores econômicos, base do triunfante “materialismo histórico”: conflitos de indivíduos, de classes e de respectivas forças armadas, conflitos representados pela “teoria do Estado mínimo”, dado o absoluto predomínio da ordem econômica sobre a política, o que tudo redundava no “conflito das ideologias”.
Era tão pacífico esse diagnóstico teórico que não se percebia que a sociedade, a despeito dele, estava mudando para outros rumos e fundamentos, a realidade se impondo em todos os setores da cultura, considerada esta como o complexo de valores espirituais e materiais que se projetam objetivamente no tempo, constituindo o real patrimônio dos povos.
Não se tinha, em suma, percepção e consciência da alteração operada no plano das ciências positivas, que implicava na mudança da civilização industrial, antes baseada na “força material ou física do trabalho”, visto prevalecer a exigência cada vez mais generalizada do “trabalho qualificado”, enriquecido de indispensáveis valores intelectivos.
Ante essa transformação radical, a promessa da “ditadura do proletariado” revelava toda a sua insuficiência, pois as conquistas das ciências, de um lado, e da democracia do outro, operavam de per si a ascensão dos trabalhadores a níveis sociais elevados, passando a “classe média” a corresponder ao mínimo de bem social desejável e exigível.
Nesse quadro econômico-social, perdia sentido a pregada idéia revolucionária de um conflito entre o trabalhador e a empresa capitalista, também esta obrigada a alterar-se para fazer face ao novo valor adquirido pelos prestadores dos serviços em um sistema de produção caracterizado pelo processo eletrônico e a informática.
É claro que, com isso, não desapareciam as desigualdades e exclusões sociais, mas o superamento destas exigiam novas soluções teóricas e novas medidas práticas, a que o “socialismo real” estava longe de satisfazer.
Por outro lado, percebeu a maioria dos donos do capital que este não podia mais resolver seus problemas com base só na livre concorrência ou nos valores do mercado, sendo necessário reconhecer que as novas formas de produção exigiam melhor compreensão do valor de seus parceiros laburistas, bem como a interferência cada vez maior do Estado em sentido crescente de assistência social.
Estou convencido de que a natureza mesma da relação capital-trabalho dominante, numa era caracterizada pelo primado do serviço sobre o capital, importa na aplicação de valores éticos, e, por isto mesmo, políticos no mundo econômico, tendo como base a solidariedade e a justiça social. A essa luz, assim como se deverá pensar em termos de um néo-socialismo - representado, no meu entender, pelo “socialismo liberal” ou pelo “liberalismo social”, termo de minha preferência - se deverá também falar em neo-capitalismo, mesmo porque é tolice querer a morte do capitalismo, o qual não constitui uma teoria, mas é uma realidade histórica sujeita a naturais alterações.
À luz do exposto, parece-me que o presente século terá o sentido de uma convergência de ideologias, para aproveitamento dos valores positivos tanto do liberalismo quanto do socialismo em uma síntese que não poderá deixar de atender a uma inevitável multiplicidade de conjunturas, as quais, no dizer sábio de Fernand Braudel, representam os elementos fundamentais da historiografia.
Aliás, já temos dado passos decisivos no sentido aqui apontado, com o sistema de poder existente em países como a França, a Itália e Portugal, e já se esboça no Brasil, atuando os partidos conservadores de mãos dadas com socialistas e comunistas. Não se trata, pois, de dar este ou aquele outro colorido político às soluções aprovadas, mas sim de encontrar respostas práticas e exeqüíveis em razão dos complementares objetivos ideais dos indivíduos e da coletividade.
É a conclusão a que chego em meu livro O Estado Democrático de Direito e os Conflitos das Ideologias, em terceira reimpressão da Editora Saraiva. Melhor seria se no título tivesse me referido à convergência das ideologias, que é o tema central da mencionada obra.
Para que essa política conciliadora prospere é indispensável, todavia, mudança de mentalidade, não devendo os parlamentares vetar projetos de lei tão somente por serem propostos por partido a que não pertençam, olvidando-se que na democracia a oposição também integra o governo, ao apoiar ou ao oferecer suas contestações.
www.miguelreale.com.br, 7/5/2005