Durou duas horas, ou mais, a tentativa do amigo em provar que a violência está entranhada no homem desde os tempos da criação do mundo, é peça de nosso equipamento básico, como os rins, o fígado, o esôfago e o piloro. Como prova, citou desde o assassinato de Abel por seu irmão Caim até a chacina da Baixada Fluminense.
Pensando bem, dei-lhe razão em parte. A história e as lendas da humanidade são uma sucessão de guerras, crimes pessoais e coletivos provocados por motivos fúteis. No campo da lenda, a guerra de Tróia, por causa de uma mulher, ou a morte de Desdêmona, por causa de um lenço.
No campo da história, brigou-se por causa de cavalos, de vasos tidos como sagrados. Nos tempos da nobreza, por filhos que não nasceram na hora devida e por outros que nasceram na indevida hora.
Critiquei a generalização do amigo mas aqui no fundo, concordei com quase tudo o que ele dizia. A violência é tão humana quanto o amor sentimento que também causa violência quando contrariado ou traído.
Após a conversa, voltando para o carro, vi uma velhinha ser assaltada na esquina da Barata Ribeiro com Santa Clara, um sujeito magrinho, de short, tirou-lhe a bolsa com força, a velhinha caiu, ajudei-a a levantar-se, alguém já havia pedido uma ambulância pelo celular, tudo bem, segui meu caminho e só então, quando peguei o volante do carro, notei que minha mão estava suja do sangue da velhinha. Ela se machucara na fronte e eu havia segurado a sua cabeça.
Cena que deveria esquecer logo e, mesmo que não a esquecesse, não mereceria memória e crônica. Mas fiquei impressionado com aquele sangue. Lembrei a conversa do amigo, a violência que faz parte do equipamento humano.
Limpei a mão e o volante com o lenço de papel que apanhei no porta-luva. Joguei o lenço num bueiro junto à calçada. Um cidadão ia passando e me reprovou a falta de educação e civilidade. Xingou minha mãe. Eu xinguei a dele e fui embora.
Folha de São Paulo (São Paulo) 08/05/2005