Se fosse vivo, Otto Lara Resende teria completado 82 anos em 1º de maio. Na minha própria família, uma prima disse-me, certa vez, que era Otto quem fazia a ponte entre nós todos. O deputado Israel Pinheiro alugou uma casa defronte a nossa, em Copacabana. Experiente político mineiro, Israel era velho amigo e colega de Afonso Arinos na Câmara. Ele costumava dizer que, se o seu partido, o Social Democrático, e o de Arinos, a União Democrática Nacional, não os atrapalhassem, eles resolveriam os problemas políticos ali mesmo, na Rua Anita Garibaldi. Daí a intimidade entre os seus nove filhos e meu irmão e eu, que tomamos de fato, nos longos anos em que nossos pais ali residiram simultaneamente, as duas casas numa só.
Dentre as filhas de Israel, graciosas e algumas extrovertidas, Helena fazia-se notar pela beleza tímida e suave. Jovens admiradores não lhe faltavam entre as relações da sua família, no Rio e em Belo Horizonte. Até que por lá começou a aparecer, com insistência, um moço magro, moreno e falante. Era o Otto.
O noivado seguiu as regras de praxe das tradicionais famílias mineiras. Com freqüência, os irmãos de Helena os acompanhava. Certa vez, coube-me este papel.
Casaram-se em bela cerimônia no Mosteiro de São Bento. Quando chegou a nossa vez, em 1955, Beatriz e eu adquirimos, por coincidência, um pequeno apartamento quase fronteiro àquele onde moravam Helena e Otto, na Gávea. E, ali, a casa de Otto se tornou o centro constante das palestras inesgotáveis daquele incansável fazedor de amigos.
Fernando Sabino eu já conhecia desde quando, aos 17 anos, se apresentara na nossa casa trazendo seu primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais, para ofertá-lo a Afonso Arinos, então em plena faina de crítica literária nos jornais do Rio. Notei, na ocasião, as botinas sertanejas que calçava. Só muitos anos depois confidenciou-me que as envergara como atitude literária, para impressionar o crítico mineiro.
Entre os visitantes freqüentes de Otto encontravam-se Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino, sempre romântico e exaltado, Marco Aurélio Moura Matos, Carlos Castelo Branco, casado havia pouco tempo com a imperiosa Élvia, José Carlos de Oliveira, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Armando Nogueira, Wilson Figueiredo, Murilo Rubião, José Aparecido e tantos outros amigos e jornalistas. Estes últimos, vindos de todos os cantos do Brasil, mas sobretudo de Minas, compunham a nata da imprensa carioca de então.
Já era considerável a experiência jornalística de Otto quando Adolfo Bloch chamou-o para assumir a chefia da redação da Manchete, que fundara ambicionando disputar com O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, a preferência dos leitores cariocas. E Otto convidou-me para que eu me encarregasse da seção internacional da revista, o que fiz escrevendo longas matérias, até partir a serviço para o exterior. Adotara o pseudônimo de Gil Cássio, herdado do meu tio-avô e homônimo Afonso Arinos, quando este colaborava na imprensa paulista, pois a condição de diplomata não me permitia exprimir-me à vontade em matérias versando sobre política externa. E, de fato, numa delas Gil Cássio recebeu pronta resposta do embaixador do Peru após criticar a ditadura militar então vigente naquele país.
Aprestava-me a assumir meu primeiro posto diplomático, em Roma, e surgira para Otto a oportunidade de trabalhar como adido cultural na Bélgica. Mas ele hesitava muito, indagando sobre a capital belga, consultando os amigos sem cessar. Um dia, confidenciou-me que, se não viajasse logo, acabaria por tornar-se um daqueles tipos populares então em voga no Rio, sentado numa sarjeta, enquanto os passantes o apontariam: ''Olha ali o Bruxelas''.
Seguimos ambos para o exterior, onde nos visitamos mutuamente. Por sua mão, Beatriz e eu conhecemos a Bélgica, onde passamos uns poucos dias hospedados no seu apartamento de Bruxelas, a fazer incursões deslumbrantes pelos canais, palácios e museus de Bruges, e visitando Gand, encantados com O cordeiro místico de Jan van Eyck.
Isto foi em 1957. No ano seguinte, chegou a vez de nossos amigos irem à Itália, pois alugáramos juntos uma casa num balneário a uns 20km de Roma. Egresso da Bélgica ordeira e silenciosa, espantava-o a desordem, a indisciplina, a gritaria e a movimentação incessantes. Ao chegar, comentou comigo nunca haver visto um povo tão parecido com a caricatura de si mesmo quanto o italiano.
Eu poderia escrever, aqui, páginas e páginas lembrando-me de Otto, da sua humanidade, da sua integridade, da sua lealdade e generosidade para com os amigos. Passou comigo, junto a Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, toda a noite do velório de meu filho primogênito. Eram lendárias as suas tiradas humorísticas, sempre desconcertantes. As crianças o fascinavam. Seu livro Boca do Inferno está entre os mais pungentes que já li, narrando dramas e tragédias da infância.
Grande jornalista, entrevistador de televisão, romancista, contista, cronista, escritor infatigável, dele ficará, sobretudo entre os que tiveram o privilégio de desfrutar da sua amizade e da sua companhia, a lembrança de um conversador sem igual, pela inteligência fulgurante da sua presença, espalhando idéias e frases, verdadeiras gemas preciosas, como se fossem pedras sem valor. Mas este jorro de espírito escondia uma profunda angústia existencial. E ele acreditava na redenção.
Um dia - faz já 12 anos -, eu me encontrava na chancelaria da nossa Embaixada em Haia quando minha mulher telefonou-me de casa, chorando. Otto se fora, de forma totalmente inesperada, em conseqüência de uma intervenção cirúrgica banal. Tínhamos uma convidada diplomata para o almoço, mas Beatriz não conseguia conter o pranto. Apoiá-la naquela emoção me ajudou a disfarçar a minha.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 12/05/2004