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O poder da faca em relação ao queijo

 

Não fica bem recorrer ao lugar-comum, mas ele é inevitável, sobretudo quando revela uma verdade que todos admitem. É o caso de relembrar que a democracia é o pior dos regimes políticos, exceto os demais. Ao se integrar em grupos, tribos e, mais tarde, em sociedades, o homem buscou uma forma de sobreviver com um mínimo de conflitos e um máximo de bem-estar. Experimentou a autogestão, o governo de conselhos, de casta, de elite, experimentou a anarquia e a ditadura.


Tanto no Oriente como no Ocidente, as tentativas de encontrar a forma de poder ideal fracassaram diante da hegemonia dos mais fortes, que detinham o poder da força, ou dos mais sábios, que dominavam o poder do conhecimento.


Recorre-se aos gregos, tidos e havidos como inventores da democracia, para datar os começos de um regime político e social que viesse do povo e para o povo. Muito discutida a primazia helênica, que teria produzido uma sociedade perfeita apesar de manter escravos e de ser obrigada a guerras permanentes entre suas cidades.


Pulando no tempo, mas sem deixar o mundo formado em torno do Mediterrâneo, de onde todos nós, ocidentais, viemos, houve as numerosas e contraditórias etapas do predomínio de Roma no pensamento e na ação do homem, etapas que atingiam, de certo modo, uma forma de gestão pública que poderia ser considerada moderna, em oposição aos conceitos ultrapassados das civilizações anteriores. Criou-se uma República, que foi substituída por um Império. Criou-se também a mistura de deus e de tirano, na figura do imperador. Mas havia um Senado e um povo. Até hoje, nos tampões de ferro que protegem as canalizações subterrâneas da Roma contemporânea, estão gravadas as iniciais que tremulavam nos estandartes das legiões que conquistavam o mundo: SPQR, "Senatus Populusque Romanum", o Senado e o Povo de Roma.


Nascia, embrionariamente, a noção de povo como gestor da sociedade e, eventualmente, como gestor de si mesmo. O longo período da decadência de Roma, as invasões dos bárbaros que vinham das retaguardas do Danúbio e do Reno, criariam a longa Idade Média, com o retrocesso de uma ordem que repetia os fundamentos das sociedades antigas: o rei, a nobreza e o resto -o resto se referindo ao povo.


Esquematicamente, essa ordem feudal predominou até a Revolução Francesa. Na Inglaterra, país que produzira a Carta Magna e uma forma também embrionária de democracia, havia o rei, a Câmara dos Lordes, a Câmara dos Comuns, que, de certa forma, representavam o povo, mas o povo dividido entre nobres e plebeus, o que dava na mesma exclusão do povo.


Foi na Convenção Francesa, eleita e formada por cidadãos, que se deu o poder de governo e da lei ao terceiro Estado, até então servo ou escravo da nobreza e do clero. Nem tudo foi tranqüilo e coerente no seio de uma assembléia que pela primeira vez se dividiu, literalmente, em esquerda e direita, de acordo com os assentos do plenário em face da mesa diretora. De qualquer forma, conservadores e liberais não nasciam do nada, das simples conveniências de classe: todos traziam na testa o sinete do povo, povo dividido, sim, mas povo. Robespierre e Danton, que poderiam representar grosseiramente a direita e a esquerda da época, tiveram o pescoço decepado pela mesma guilhotina que cortara a cabeça do monarca deposto.


Democracia seria isso, um banho de sangue estéril que devoraria a todos? Era preciso criar, dentro do sistema político e social de um Estado moderno, não um senado do feitio da Roma Imperial, muito menos de uma convenção movida a paixões e vendetas pessoais ou de classe.


O núcleo do poder, o povo, foi dividido em três expressões que formam hoje as democracias modernas. O Executivo é o mais ambíguo: por meio de alianças e pressões, empolga os poderes restantes, nomeando o Judiciário e barganhando com o Legislativo.


Por sua vez, o Judiciário, que em tese seria o mais isento dos três, sem paixões nem conveniências de tempo e modo, por definição se limita a interpretar e a aplicar leis que não fez e das quais muitas vezes discorda. Ao longo da história, muitas vezes o Judiciário é mantido em regimes autoritários e nada pode fazer além de cumprir a estrutura legal que dá suporte ao tirano.


O Poder Legislativo foi criado para dar régua ao Executivo e compasso ao Judiciário. Por isso mesmo é criticado, com diferentes cotas de razão e oportunidade. É o Poder desarmado e de exposição permanente diante do povo que o elege e o integra.


É perfeito em definição e imperfeito em sua ação, uma vez que expressa os conflitos, os equívocos e até mesmo os erros de uma sociedade. Diferentemente do Executivo, que tem a faca e o queijo na mão, e do Judiciário, que arbitra o uso da faca e do queijo, o Legislativo absorve a ambigüidade estrutural de ser metade poder e metade povo, dificilmente se realizando como uma ou outra coisa. E geralmente é mais queijo do que faca.


 




Folha de São Paulo (São Paulo) 13/05/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 13/05/2005