Minha leitura é positiva sobre a Cúpula América do Sul-Países Árabes, realizada nesta semana em Brasília.
Os meios de comunicação incorporaram ao tempo real a impressão de que o acessório é o principal. É uma forma de desinformar, pois as versões conflitam com os fatos. Essas considerações são feitas sobre a cobertura da cúpula. No hemisfério Norte, o noticiário aponta para um fracasso, na medida do silêncio profundo que lhe dedicaram. Aqui, os fatos colaterais pareceram maiores do que os principais, como o destaque para a questão bilateral Brasil-Argentina, a verborragia chaveana, a etimologia e a definição de palavras como "terrorismo" e "democracia" e a saída à francesa de Kirchner.
Analiso o lado essencial: o Brasil assumiu com êxito o seu lugar de parceiro político global, mesmo em regiões onde não tínhamos nenhuma tradição, como no Oriente Médio. A diplomacia brasileira, na continuidade da sua reconhecida competência e serviços que tem prestado ao país ao longo de sua história, conseguiu, num espaço de tempo muito pequeno, mobilizar todos os países daquela região e obter a participação e o engajamento para que o evento tenha continuidade e raízes. Isso abre à América do Sul uma janela comercial e política. Mostra o prestígio internacional de Lula. Evidentemente, não é possível, numa reunião desse porte, uma visão uniforme de atos e fatos com os interesses legítimos, mas conflitantes, dos Estados nacionais. Nesse terreno, a única busca alcançável é a opinião média, na qual todos possam estar de acordo. A arte da diplomacia é ladear as questões irreconciliáveis e buscar um espaço comum de unidade. O trabalho do chanceler Celso Amorim foi de grande competência. Na parte formal, mostramos nossa capacidade de organização e de apoio a grandes conferências e, no essencial, criamos um elo institucional do nosso continente com o mundo árabe, carente de solidariedade e entendimento. Tanto assim que a próxima preparatória será em Buenos Aires, em 2007, para a reunião de 2008 em Marrocos.
Em política, a palavra é 50 por cento da ação. As palavras são instrumentos de mobilização, e o documento que foi elaborado é um excelente texto, que soube contornar os pontos ultra-sensíveis e focar os principais. Para mim, democracia não tem adjetivo, é democracia mesmo, nada de social, de popular -como nos antigos países da URSS. Terrorismo é terrorismo, a mais abominável das violências, porque é a gratuidade de atingir pessoas indiscriminadamente. Mas ninguém é ingênuo para não saber que esses valores são ocidentais. A reação de Israel é compreensiva, faz parte do jogo. E mesmo os americanos têm dificuldade em dizer que o Iraque não é democracia. Política externa lida com realidades, e não com o sexo dos anjos.
Era imprevisível que a cúpula iria coincidir com a tragédia das cinco derrotas do Corinthians e que o Passarela teria de ser despachado para Buenos Aires.
Depois, a separação de Ronaldinho e Cicarelli, com tatuagens e tudo. Sem falar no prefeito de Esperantina, no Piauí, que criou, justamente na data, o Dia do Orgasmo, que é, na definição de Houaiss, "sufusão tépida e efervescência de sentimentos". O prefeito, ex-seminarista franciscano Santolia, anuncia que vai construir um orgasmódromo.
Com tudo isso a desviar as atenções, nada ofuscou os bons resultados do desfile dos árabes.
Folha de São Paulo (São Paulo) 13/05/2005