Em meados de 2004 a hipótese de reeleição de Marta Suplicy em São Paulo emparelha com o sucesso possível de Serra na cidade-chave do país. É como se se antecipasse já um plebiscito sobre o futuro imediato do PT, com reflexo na renovação da confiança em Lula em 2006. Impensável esse prognóstico ainda há três meses, no apoio nacional à eleição diferente e à confiança visceral num Brasil da mudança. Esta inédita densidade de suporte começou na posse, como uma verdadeira festa no céu para o país do outro lado. A clássica trégua da lua de mel oferecida pelas oposições desenrolou-se num tapete sem fim ao êxito do governo entrante.
O poder, forte de todas as adesões, permitia a quebra dos mitos do imobilismo quanto às reformas críticas, vistas como a pedra de toque de uma nova era política. Lula venceu de saída as tentações de postergação continuada, que cercavam toda ida a voto das leis previdenciária e fiscal. As maiorias múltiplas, da quase legião estrangeira, a fervilharem na bancada da situação deram ao Planalto todas as certezas para vencer a convicção do impasse, que terminaria por anatematizar o governo FH.
O avanço real daquelas medidas se aguava pelas concessões aos votos de clientela, ou do status quo passados ao balaio do Executivo. Mas a mudança se previu em etapas e, sobretudo, o que importava, de saída, era o desbloqueio da iniciativa. O símbolo, no caso, vale a realidade, e muda uma atitude de espírito quanto ao pôr-se em marcha o Legislativo, mesmo mínimo o primeiro passo.
O Governo não só manteria, por aí mesmo, a iniciativa no Congresso, como evitava que, de saída, as novas oposições ganhassem as suas casamatas, para a longa guerra de trincheira esperada por um regime que pregava a transformação social. Fomos ao perde e ganha de um processo democrático e da defesa, contra o Planalto, dos interesses do status quo, em que se juntaram o atraso, frente a modernização e o francamente obsoleto, que se aninhasse nesta resistência. Uma luta contra a reforma agrária, por exemplo, somaria o que seja abuso no regime de produção do latifúndio e a estrita e arcaica valorização inerte da terra.
O Executivo venceu todo o primeiro ano de mandato sobre o manto dessa maioria excessiva, costurada à minúcia de uma ajustadíssima política de clientela, no melhor sentido tradicional. A instalação de legendas excrescentes à esquerda, como o PL, o PTB, e agora o PP, no cortejo dos ganhadores, excedeu os melhores presságios do Planalto no Congresso. Mas não passou aos acordos locais na antevisão do pleito municipal de outubro próximo. Não se transferia, naturalmente, dos favores e das forças de voto, no Planalto, o repetir-se a vitória de Lula nos novos pactos eleitorais de base. Não só não se desenharia, afinal, o pleito de 2004, como projeção do ganho presidencial mas se mostraria o pavio curto, e a fragilidade quase perversa, no enlace entre a dimensão federal e a primeira fonte do poder, junto ao eleitor nas prefeituras. Nem tão a despropósito, mas nem tão de repente, aí está este plebiscito prematuro, a que se expõe o Presidente, quanto à recondução natural ao Planalto em 2006, dada como favas contadas na festa da posse.
A cumplicidade popular absorveu o primeiro anticlímax quando, afinal, as medidas iniciais do Ministério, de corpo inteiro à obra, foram à drasticidade do corte orçamentário, e ao sacrifício, na carne, da esperança, pela moção direta do presidente exigindo o cutelo. A busca determinada do equilíbrio financeiro do sistema forçava a espera para que se balizasse o cenário do espetáculo do desenvolvimento prometido na rampa do Planalto.
De toda forma, não se delineava diante da opinião pública uma tábua de aprovação de Lula, mesmo fosse na forma de um calendário difuso, cobrável quase que à esmo. As primeiras pagas da promessa vinham, solitárias, desligadas de um avanço comum e ordenado. O Fome Zero tornou-se o imã prioritário desta atenção. Mas o seu anúncio praticamente perdia o impacto, na sucessão de emperros burocráticos para montagem da difícil e frustrante infra-estrutura para que o programa surgisse, de fato, aos olhos da nação como a diferença do governo entrante. Conservava-se intocado, entretanto, o capital de Lula, e não se definiria um quadro crescente de cobranças e, muito menos, uma marca sistemática na argüição do situacionismo.
A modorra do day after no poder leva ao gatilho da insatisfação, travado de maneira tão extraordinária, ainda pelo coloquial de Lula com o Brasil, sua gente e sua espera, e o trabalho do tandem Palocci-Meirelles, permitiu a convicção - revigorada pelo só discurso da Presidência - da repartida efetiva da mudança.
O Governo Lula ganhou sua matriz histórica fugindo dos climas de forra, de virada de página, de utopismo orgiástico, para pôr o país à trilha do viável, pelo realismo da pobreza de alternativas e da avaliação concreta dos recursos do país condenado, ainda, à conjuntura. Não se duvide de que, agora, e por ações concertadas como a do ministro Patrus, o imaginário coletivo vá contar com os resultados cumulados, de uma saída em bloco da mera garantia da estabilidade, para que floresça a promessa do outro Brasil.
Entramos numa corrida-limite para assegurar a mecânica do espetáculo quando a força política do sistema baixou às caldeiras das prefeituras, para garantir o êxito de cada um, no velho estilo do salve-se quem puder. O largo prazo, entretanto, de que depende o sucesso definitivo do governo não se pode comprometer pela volta melancólica do PT à política local de campanário. Não se transige com a escala do que se prepara. É a só a largueza do primeiro propósito a se manter - e só o presidente pode assegura-lo - que miniaturiza o possível plebiscito de agora. Este dá conta da impaciência, mas não da esperança do que se plantou há três décadas. E Lula é um corredor de maratona.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) 21/05/2004