A América Latina, que sempre teve a imagem de um caldeirão social, entrou nos anos 90 como lugar de arrumação sob a forte influência das políticas mundiais de estabilização, à base do neoliberalismo. Estas, dando predominância ao econômico sobre o social, não ofereceram as respostas reclamadas pela sociedade, que procurou novos caminhos, levando ao poder líderes-símbolos da esquerda latino-americana.
No Brasil, embora seja o país que mais invista na área social (12% do PIB), a demanda ainda é imensa, agora incluindo a classe média empurrada para baixo.
Há um clima de insatisfação que permeia a América Latina. Os acontecimentos verificados na Venezuela, com as marchas para derrubar Chávez e para segurar Chávez, os panelaços em Buenos Aires, que afastaram três presidentes, os da Bolívia, que levaram à renúncia de Sanchez de Lozada e agora pressionam para desestabilizar Mesa, a queda de Gutiérrez no Equador, têm todos em comum o que se chama de política de multidões, caracterizada pela forma anárquica de ação quando a comunicação em tempo real reproduz o seu poder numa escala geométrica, que se desdobra numa explosão em cadeia. Foi esse o modelo que funcionou na queda dos regimes da Europa do Leste. Na Argentina, os piqueteiros, os tocadores de bumbo e a massa invadiram praças e ruas investidos de um poder quase constituinte anárquico, em que as pessoas diziam: "que se vayan todos, que no quede ni un solo".
Nossos regimes não adquiriram estabilidade capaz de conjurar crises institucionais.
Para aumentar as preocupações, a Latinobarómetro, uma agência que tem o apoio do BID e do Bird, publica uma série de 1996-2004 que avalia o apoio popular à democracia e traz números perturbadores. Assim, 46% dos argentinos e 33% dos uruguaios aceitam um regime não-democrático desde que resolva os seus problemas econômicos; no Brasil, esse número sobe para 54%. Outro índice é o grau de satisfação com a democracia, que é de 28% no Brasil, de 34% na Argentina e de 45% no Uruguai. O país de maior satisfação é a Costa Rica, com 48%; o Peru é o menor, com 7%.
Esses números são um alerta aos políticos sobre a responsabilidade de que estão investidos.
Em meio a tudo isso, a casa Bonhams anuncia o leilão do penico de Napoleão, com sua coroa, que ele não usou na ilha de Elba, prisioneiro dos ingleses. Sobre penico de imperador, conta-se que José Clemente Pereira, um dos promotores da Independência, foi visitar Pedro 1º, que estava doente. O imperador disse que queria urinar. Ele tentou pegar o penico, mas o Chalaça interrompeu: "Quem tem a honra de levar o penico ao imperador sou eu".
Napoleão foi o homem que comandou as multidões para fazer um poder solitário. Seria seu neto a "criança da Europa", o menino Kaspar Hauser, que surgiu sem passado e sem memória para ser misteriosamente assassinado por um desconhecido. Para poetas e escritores do século 19, foi a visão da solidão. Lembro-me do verso de Verlaine: "Je suis venu, calme orphelin..."
Era a antítese da multidão, como o "homem do piano", que foi encontrado numa praia deserta do sul da Inglaterra, como Kaspar Hauser, sem memória, sem falar e sabendo apenas uma coisa: tocar piano.
O problema é que as multidões não vivem de solidão nem de música.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/05/2005