Alguma coisa de ruim estava para acontecer na vida e naquela manhã de Leopoldo Quintães, escrivão-substituto da 42ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro. Como sempre fazia, chegou cedo ao fórum na rua Dom Manuel, cumprimentou o porteiro e o ascensorista, subiu ao 9º andar, cumprimentou o faxineiro que espanava a pilha de processos que seriam despachados, à tarde, pelo juiz titular da vara, Hugo Backer.
Leopoldo, que era chamado de Popoldo na intimidade, abriu a gaveta de sua mesa e encontrou uma orelha dentro dela. Uma orelha humana, com um pouco de sangue coalhado, cortada recentemente.
Num movimento de autodefesa, mais do que de espanto, fechou rapidamente a gaveta, acendeu um cigarro, apesar do aviso na parede do fundo, bem destacado: "É terminantemente proibido fumar neste recinto". Com o rabo do olho, examinou a cara do faxineiro para ver se ele desconfiara de alguma coisa. O faxineiro de nada desconfiara, mas Popoldo desconfiou que precisava fazer algo antes que os colegas chegassem.
Aproveitou o faxineiro ter ido embora, abriu a gaveta, tirou a orelha e com ela procurou uma gaveta alheia que estivesse aberta, dando sopa. Na terceira tentativa, encontrou uma, na mesa do escrevente-juramentado Waldo (com W) Pinto Guimarães. Botou a orelha lá dentro e foi acabar o resto do cigarro no corredor, onde não havia avisos proibindo fumar, mas avisando que a Justiça é cega.
Meia hora depois chegou o Waldo. Devia ter dormido mal, era boêmio, freqüentava o bar da Cobal, no Leblon. Fingindo examinar o laudo pericial de um processo complicado, Popoldo esperava a reação do escrevente-juramentado quando descobrisse a orelha.
Waldo custou a abri-la e, quando a abriu, viu a orelha. Não deu um grito, tampouco se espantou. Pegou-a e colocou-a na pilha dos processos que o juiz titular deveria despachar à tarde. A Justiça é cega e a ela competia fazer alguma coisa.
Folha de São Paulo (Rio de Janeiro) 21/05/2005