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O penico de Napoleão

 

Como qualquer mortal, ou mesmo imortal, volta e meia questiono meus conceitos e atitudes. Ultimamente, olhando tudo em conjunto, o que fiz de ruim e deixei de fazer de bom, tenho vontade de subir à montanha e pedir clemência, implorar o perdão de todos.


Entre meus pecados, está o de nunca ter levado a humanidade a sério, desprezar os bons propósitos, a moral e a compostura. Estava começando a mudar de opinião, achando que eu exagerava -bolas, impossível que a humanidade não tenha alguma coisa de aproveitável.


Durou pouco o meu discreto arrependimento. Li nos jornais, na semana que passou, que o penico de Napoleão será posto em leilão, pela casa Bonhams, em Londres. O lance inicial será modesto - 2.220-, mas a expectativa é que seja arrematado em torno dos 50 mil ou 60 mil.


Nisso tudo, só absolvo mesmo o imperador, então exilado em Santa Helena, que morreu sem saber que os ingleses estavam fazendo um penico especial para ele. Consultei o "Memorial de Santa Helena", de Las Cases, para verificar se havia qualquer referência ao penico. Não há. Não tenho informações para descrer do penico. Tampouco para acreditar nele.


E aí está o arrependimento do arrependimento que começava a ter pelo fato de nunca ter levado a humanidade a sério. Segundo a Bíblia, que ainda é a referência maior para nós, ocidentais, logo após a queda de nossos primeiros pais, o Criador condenou-nos, a todos: os homens, a ganhar o pão com o suor do rosto, as mulheres, a parir os filhos com dor.


Entre as maldições lançadas, o Criador não incluiu esta, a de valorizarmos um penico, ainda que um penico nobre, destinado a servir a um ex-imperador do tamanho e feitio de Napoleão.


Nunca tive um penico que pudesse considerar meu. Acho que meu avô tinha um. Não fez parte da herança familiar e não devia valer 2.200. Não fico ressentido com isso. Afinal, o avô não era imperador, mas simples chefe de estação em Barra do Piraí.


 


 


Folha de São Paulo (Rio de Janeiro) 22/05/2005

Folha de São Paulo (Rio de Janeiro), 22/05/2005