O acaso faz das suas. Embora conhecesse pessoalmente o marechal Waldemar Levy Cardoso, avô do meu amigo Eduardo Levy Cardoso, só agora tive a oportunidade de conversar demoradamente com o grande e exemplar militar brasileiro. Foi na casa de D. Lily de Carvalho Marinho, no Cosme Velho, onde se reuniram os membros da Associação que congrega os homenageados pelo governo da França com a prestigiada Legion d"Honneur.
Aproximando-se em cadeira de rodas ("fui vítima de uma queda"), cumprimentou-me calorosamente, para depois se dirigir com não menos entusiasmo ao médico Ivo Pitanguy: "Aprecio muito o senhor, que só faz embelezar o mundo." A conversa prosperou, demonstrando uma primeira e grande descoberta: a memória daquele homem de 104 anos, nascido em dezembro de 1900, no Rio de Janeiro, não conhecia panes. Discorria sem dificuldades sobre o passado e o presente ("minha esposa não pôde vir porque a saúde não permitiu. Ela está com 97 anos de idade").
Ganhei a festa. O marechal, acompanhado da filha e do genro, também militar, discorreu sobre diversos aspectos da guerra na Itália, onde esteve na frente de combate, onde foi ferido gravemente, mas conseguiu salvar-se, segundo ele, graças a uma pequena medalha de Santa Bárbara que lhe foi dada pela mulher, na véspera da partida para a guerra. "Sou judeu, não nego, mas Santa Bárbara, a quem venero, foi quem salvou a minha vida."
Amante da matemática, o marechal Waldemar Levy Cardoso desenvolve uma lógica especial para explicar a sua mistura de religiões: "Minha mãe era muito religiosa. Tinha o sobrenome Levy. Não queria que me casasse fora da religião judaica, mas aconteceu. Quando nasceu o meu filho César, infelizmente morto em Itu (SP) num acidente de automóvel, aos 40 anos, nele tínhamos feito a circuncisão. Com as outras duas filhas não houve problema." E deu um amplo sorriso.
Entremeando a conversa com goles de uísque, sempre firme em suas lembranças, o marechal Waldemar Levy Cardoso recordou sua passagem pela Petrobras e o quanto essa empresa é importante para o futuro do Brasil. "Ser seu presidente foi uma das maiores honras da minha vida."
Depois, sempre sorrindo, voltou a falar do amor por sua esposa. Explicou as razões da longevidade de ambos e prometeu: "Vou levá-la até os 100 anos, pelo menos."
Falou da sua vida regrada e, provocado, não deu uma razão objetiva para chegar assim lúcido aos 104 anos: "Não se pode dizer que seja uma questão genética, pois os meus pais morreram cedo."
E voltou às origens do sobrenome: "Sei que há Cardoso que são de origem judaica, mas não é o meu caso. É nome de origem portuguesa. O meu confessado judaísmo provém do sobrenome Levy, da minha mãe, com origem provável na Argélia. Disso me orgulho muito, pode crer." Uma figura notável da história do Brasil.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 04/04/2005