Terra é base, dizemos todos. A terra, com suas águas, seus montes, suas árvores, suas flores, suas pedras, seus vulcões. A força da poesia de um Saint-John Perse teve precisamente essa base, dela hauriu seu entendimento geral das coisas. Perse fez questão de visitar as grandes e solitárias extensões de terra do planeta, certo de que ali se achava o significado final da vida.
Cenas que viu, durante prolongada visita ao Deserto de Gobi, colocou Perse em versos longos, às vezes em prosa poética, para enumerar lugares, objetos, atividades, pedras, formas. Na exigência, que sempre se fez, de que o poeta pertença ao seu tempo (o verbo inglês "to belong" exprime bem o sentido inteiro dessa participação) a posição de Perse era pertencer ao seu espaço, ao espaço em que vivemos e que nos contém.
Livro de poesia lançado agora - "Vulcano: Thera", de Flávio Terri - instala entre nós a presença de um conjunto vulcânico no meio do mar, cercado de ilhas, onde o poeta foi buscar seus versos feitos de lavas. Antes, descreve o que é Thera.
É um "conjunto de ilhas vulcânicas resultantes de uma das mais importantes erupções no planeta nos últimos 10 mil anos." Mais: "Em pleno Egeu, Thera surgiu de uma erupção mítica, datada possivelmente de 1598/1650 antes de Cristo, a Sudeste da Ática, compondo a série meridional das Cíclades. O cataclisma inspiraria Platão na parábola de Atlantis, vista como alegoria literária."
Começa Flávio Terri por uma apresentação em prosa poética: "Tristeza da vinha poética escavada na pedra ao sol escaldante. Não há sombra. O vento sibila às noites o ar seco do mar e o vulcão descansa. Solidão das ilhas, mar aberto, o silêncio da saudade do mundo abala o sono indormido que transporto em palavras de emoção sem idéias, folhas soltas, talvez poemas de amor à vida em plena tragédia. Mitos do inconsciente. Thera".
Os versos de Flávio Terri levantam a paisagem intensamente viva, embora morta, em que Deus existe: "Natureza sóbria,/ silenciosa no portentoso Egeu,/ assombra,/ consciente da unidade/ em um só Deus." O poeta descreve a terra e o mar: "Dia claro, invisível, puro espaço/ aberto sobre o mar azul em vaso côncavo/ de terras altas, secas, pedregosos, duras,/ tingidas de estrias brancas longas frias/ nas agudas cristas, tensas montarias / Ícones."
Dentro daquele espaço não pode o tempo ser esquecido: "Não se destrona Cronos/ impunemente / que o homem é feito prisioneiro/ do mar, do sol, da vida,/ da qual não governa o seu destino./ Não se detém o tempo/ nem os cosmos/ ou a memória/ e o risco de todo o esquecimento."
Explica o poeta o que é Thera ("Esse vulcão é ativo num ciclo de cinqüenta anos e sua vontade isolada, em meio ao mar, evoca o poder dos deuses sobre seres e coisas")
Na certeza de que palavras são como pedras, que jogamos uns aos outros, mas também são pedras em si, puramente pedras, firmes, duras e límpidas, que nos cercam por todos os lados e recebem nossos pés, faz o poeta o elogio da pedra em seu poema "Prometeu": "Pedra negra pedra tempo e Thera/ árido gris,/ caldeira imponderada/ irrompe/ irreprimível, em meio ao mar./ Crisol humana/ criado à crista da cratera./ O ser herói argila / nasce ao sentimento acorrentado/ e sobrevive/ ao tempo,/ ópio cinza do prazer./ O ser grimpado a rocha/ grita/ seu estéril esforço de viver."
A edição de "Vulcano Thera", feita na Itália, é bilíngüe. Sendo os poemas e as apresentações traduzidos por Luciana Stegagno Picchio, membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Em sua introdução, chamada "Palavras como pedras", chama Luciana a atenção para a "homologia entre as palavras e a paisagem que as subentende" e define os poemas do livro nestes termos: "Palavras como pedras, que só na proximidade de outras palavras-massas adquirem significado.
Ainda que a custo de alguma violação, procurei produzir obra de tradução que não rompesse aquela significativa e espontânea combinação. Um arquipélago de palavras nascidas da deflagração de sons e significados, da colisão de mitos seculares com a angústia do homem atual, tal como o anfiteatro daquelas ilhas irrompera da erupção do vulcão."
Na poesia brasileira de agora, em que temos exemplos de todos os caminhos do momento, vale a pena realçar os versos de Flávio Terri, numa poesia que é também um ato de confiança na vida e uma prova da força das palavras no mostrar as diversas experiências de todos os que lidamos com o ser das coisas. Quando Heidegger diz que "o pensador e o poeta habitam as palavras, são os seus guardiães", queria exatamente mostrar que na palavra está a única possibilidade de superarmos tempo e espaço, embora intimamente envoltos neles. E de, com isto, chegarmos a um entendimento do mundo e das coisas, através da chave da palavra que abre todos os mistérios.
"Vulcano: Thera" foi editado na Itália, sob a direção de Rodrigo Ferri. Diagramação de Roberta T. Matsunga. Anteriores a este volume, havia Flávio Terri publicado "Nel mezzo del cammim"(poesia), "Manhattan" (idem) e "O encanto dos Orixás" (ensaios e poemas), todos editados pela Expressão e Cultura.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 05/04/2005