O que pudemos pensar nesses dias da seqüência natural ao seu poder supremo, urbi et orbi, que representou para Bush indicar, como no desfecho de um silogismo, o seu subsecretário, Wolfowitz, para a Presidência do Banco Mundial? O recado que dá a todos nós é o da absoluta conseqüência deste gesto. O mais importante órgão da aparelhagem internacional só se pode conceber para Washington como prolongamento e, de vez, das decisões do Salão Oval.
E ao rematar a nitidez das conclusões, Bush só relembra, exatamente, de como foi a visão do mundo e o padrão de crenças do auxiliar, que leva o presidente a confiar-lhe os rumos do leme daquele universo portentoso. É belicista, sim, e propositor da teoria da preempção dos Estados Unidos, bem como, no próprio dizer dos outros assessores palacianos, o principal arquiteto da invasão do Iraque e da busca, por mais que precária - e agora se vê trabalhando no vácuo - na busca do probatório do perigo da guerra atômica, senão - pior - bacteriológica de Saddam Hussein.
Bush não deixa dúvidas quanto ao que nos aguarda no segundo mandato, e pode fazê-lo na maior legitimidade pelo estridente apoio - único na história americana - dos 59 milhões de votos que tornaram inequívoca a sua vitória sobre Kerry. O primeiro sentimento passa hoje de maneira ineludível ao imo mesmo da sociedade americana. Nasce o projeto Advance, sob o patrocínio comum de Mc Cain, o principal adversário republicano do próprio Bush, e de Liebermann, o antigo colega de chapa de Gore na sucessão de Clinton. Trata-se de formalizar o compromisso urbi et orbi dos americanos com os princípios da declaração de independência dos founding fathers do país. Aí está, necessariamente, a luta pela liberdade e pela democracia, extensível à defesa em todo o mundo dos Direitos Humanos.
O projeto deixa, entretanto, implicitamente, como viável esta mesma intervenção contra visões distintas da prática desta liberdade, ou desses direitos, ou desta democracia. O corolário implícito é o da viabilidade de se fazer prevalecer, urbi et orbi, a visão americana tanto quanto, afinal, é a universalização da sua ordem que está em causa no mundo que pela primeira vez faz a experiência de um superpoder unipolar.
Nesta mesma perspectiva, esses valores podem ser levados a uma usura e a um conflito tão-só para que venham prevalecer os seus simulacros. Noutros termos, a consensualização da hegemonia americana pode colocar em jogo a própria coexistência de um universo multicultural. A diferença se torna por si mesmo talvez suspeita, num universo em alerta permanente e sujeito, talvez sem volta, à "civilização do medo". É desnecessário dizer o quanto em todo o mundo feneceu a dita cultura da paz na florescência ainda do romper do milênio.
Deparamos um mundo sob a mira da defesa de valores garantida pela guerra de preempção. Ou seja, como estreada no Iraque, a de se destruir o adversário - pela suspeita da sua eventual agressão ao universo americano - sem mais perda de tempo nem disposição à prova do contrário. O disparo, quem sabe até das minibombas nucleares preventivas, se justifica pelo direito a furtar-se a uma hecatombe imaginada, como extensão e desdobramento do ataque do 11 de setembro. Pode presumir as circunstâncias em que um grupo como o Al-Qaeda se infiltra em múltiplos governos da atualidade. A mira mais larga do "eixo do mal" foi reconhecida, aliás, por Condoleezza Rice nos seus debates no Senado americano. São agora seis, e entre eles - perguntam os latino-americanos - encontrar-se-ia uma Venezuela, mesmo depois da esplêndida ratificação de suas origens democráticas pelo plebiscito de há meses. Não obstante, o tema básico de Donald Rumsfeld há dias no Planalto foi o de manifestar apreensão com a massa de fuzis moderníssimos russos adquiridos pelo governo Chávez.
Desenha-se idêntico probatório presumido como o que levou o ex-secretário Powell a brandir as cápsulas de possível guerra bacteriológica no Senado americano? Claro que, neste mesmo quadro, a conjuração da hegemonia parte para a viabilidade de um retorno ao relativo equilíbrio internacional onde um outro contendor, ou poder de porte análogo, possa contra-restar o Salão Oval. A União Européia parece ser este protagonista da força da sua primeira União, mas, exatamente, agora, sofrendo dois baques sucessivos na promessa de que se viesse a constituir, mais do que um mero compromisso de Estados, uma expressão macrocontinental de uma mesma cidadania comprometida com os Direitos Humanos e a democracia.
Tende o debate turco sobre a inclusão, ou não, do complexo de país de 75 milhões de habitantes, maior que passaria a fazer parte da associação, e com indiscutível influência sobre os condicionamentos críticos do Oriente Médio. Doutra parte, ainda, a entrada em massa dos países das nações da Europa Oriental no Pacto de Bruxelas trouxeram também uma nova dependência aos Estados Unidos. A Europa dos 25 não tem mais a mesma autonomia da dos 16, comprimido o eixo Paris-Bonn pela fieira dos países do Leste Europeu, quase como a fazer meia volta do satelitismo soviético para o americano.
De toda forma, a chance deste reequilíbrio está exatamente em que a União Européia não volte às velhas políticas de balanço de poder apenas, mas se alicerce num estado de consciência universal, de cidadania e de mobilização pelo protesto e pelo povo na praça. Se o mundo do Salão Oval brandirá sempre o 11 de setembro só começa agora a se transformar em data-chave o 15 de fevereiro de 2003: o dia em que milhões foram às praças de Barcelona, Londres, Roma ou Paris, para buscar a voz diferente, a do mundo que não quer ter como fato consumado os dois fundamentalismos sob os quais as torres gêmeas de Manhattam continuam a cair, em câmara lenta.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 08/04/2005