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O escritor e o ministro

 

Ao fazer a revisão para um de seus livros a ser reeditado, Otto Lara Resende deixou uma observação à margem do texto: "Só uma besta se mete a escrever livro!". Meticuloso, amante da forma exata e do pensamento original, Otto sofria o diabo na hora de transmitir aquela prosa que tanto admiramos, mas que, para ele, estava sempre incompleta, insatisfatória, banal.


Pulo do Otto e do ofício do escritor para os ministros que sofrem o diabo não para melhorar o pensamento e aprimorar o estilo, mas para permanecerem no cargo e evitarem não a demissão, que faz parte da vida e da política, mas a fritura, que é humilhante, estação terminal do vazio que todos evitam, mas que adivinham possível nos acidentados trilhos da vida pública.


A forma e o conteúdo torturam o escritor que busca a perfeição, como no caso do Otto (evidentemente que não é o meu caso, nunca dei bola para a perfeição, quero ver no que vai dar). Mas a batalha do Otto era travada dentro dele mesmo, uma guerra contra ele mesmo, no interior de suas entranhas de artista da palavra e do pensamento.


No caso dos ministros a serem fritáveis (potencialmente todos o são), é o contrário. Estão com consciência tranqüila, o cargo é do presidente e o presidente os prestigia, os candidatos à vaga é que espalham boatos pelas colunas dos jornais, denunciam as telhas que o ministro trocou de sua casa porque havia goteiras, as viagens de passeio que fez com a família, contratou uma estagiária que fuma maconha e aconselhou a compra de um lote de canetas vermelhas que deviam ser azuis. Tudo mentira, ou pelo menos fatos não provados, ou, se provados, explicados por necessidade de ofício e verba.


Surgem suspeitas de que a demissão seja iminente, não passa da semana, do mês, da próxima eleição, o café que o contínuo lhe serve a cada dia fica mais ralo e frio. Mas, ao contrário do Otto, o ministro não se sente uma besta. Vai em frente. Besta é quem não gosta de ser e ficar ministro.


 


Folha de São Paulo (São Paulo - SP) 01/07/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP), 01/07/2004